Adivinhações pouco prováveis de se concretizar

Imagem criada através de Midjourney.

Chegou a altura do ano em que se fazem retrospectivas, balanços e revisões. Também costuma ser época de projecções, desejos e resoluções, cuja taxa de concretização é notoriamente baixa, como quase todos sabemos por experiência e, já agora, também por o que a ciência nos demonstrou.

Contudo, parece haver algumas vantagens nesse exercício prospectivo. Sobretudo se nos focarmos mais nas abordagens que queremos mudar ou implementar e menos no que queremos evitar ou deixar de fazer1. Também podemos aumentar a seriedade desse exercício se adoptarmos uma mentalidade próxima da que tanto cientistas como humoristas usam para fazer bem o seu trabalho e arte: encontrar novos enquadramentos e perspectivas para as situações.2.

No limite, tais exercícios servem para nos tranquilizarmos. São uma espécie de chupeta existencial. É que nós, pessoas, gostamos da ilusão da previsibilidade e do controlo, e temos tendência para desgostar dos seus contrários. Talvez por isto, raras vezes são exercícios criativos, estes que fazemos com as passagens de ano. Dá muito trabalho e é necessária uma disponibilidade elevada e particular para nos criarmos e recriarmos, activa e conscientemente. Em vez disso, comparamo-nos com versões passadas e pretensamente falhadas de nós próprios, que contrastamos com os exemplos de pessoas de referência ou apenas com modelos (de eficácia, de produtividade, de sucesso entre outras obsessões modernas). Infelizmente, para muitos o resultado é auto-depreciativo - “Sou sempre a mesma coisa…” - ou, no outro extremo, ingenuamente positivo e esperançoso - “este ano é que vai ser!”.

E se, em vez de procurarmos estabelecer um plano grandioso e infalível, procurássemos ser mais certeiros nas nossas intenções e adivinhações3? Afinal, não é isso mesmo a intuição4: a combinação de alguns sinais que captamos com a construção de uma “história” que nos dá a convicção de “verdade”, que é só uma inferência simples e rápida baseada na nossa experiência, no que julgamos saber? Uma adivinhação supostamente fundamentada, portanto.

É precisamente a isso que me proponho. Adivinhar, intuir ou desejar algumas mudanças para o futuro, baseando-me na minha experiência, obviamente parcial e limitada, deste ano que passou, em particular.

Resolvamos o problema da “carga de trabalho”

Nunca tinha visto com tanta evidência este padrão: pessoas a queixarem-se, na maior parte dos casos com legitimidade e propriedade, da quantidade de trabalho a seu cargo. Foram pessoas com responsabilidades diversas, de várias organizações, de distintos tipos e dimensões, a operar em sectores diferentes. Há, simplesmente, demasiado para fazer. A exigência para fazer tudo, depressa, bem e sem erros manteve-se ou até aumentou para fazer face às exigências do mundo actual e do que se avizinha, já se fazendo sentir, mesmo sem ainda existir5.

Foi também o ano em que recebemos mais pedidos para ajudar pessoas, equipas e organizações a saber lidar com a workload. Não ganhámos nenhum desses projectos. Talvez porque tenhamos a sobranceria e a veleidade de ter encontrado a solução para este mal que, apesar de não ser recente, parece ter-se agudizado: alivie-se a carga, o que é o mesmo que dizer, “trabalhe-se menos e melhor.

Claro que existirão consequências, se tal acontecer. Claro que afectará os custos e os resultados. Porém, essas parecem ser consequências inevitáveis6.

Mais conversas e menos reuniões

A “reunionite” é uma patologia corporativa há muito identificada. Também esta enfermidade parece ter-se agravado nos últimos anos, com a profusão das videoconferências e com cada vez mais de nós a trabalhar fora dos escritórios.

Parece que, pela ausência física e pela distância, precisamos mais de ver e de ouvir as pessoas com quem trabalhamos, mesmo que do outro lado as câmaras desligadas, ou os olhos que se desviam, evidenciem falta de atenção e de interesse, além da presença.

A expressão “essa reunião poderia ter sido um e-mail” torna-se cada vez mais banal, ouvindo-se da boca de pessoas vulgares e não apenas de gurus da produtividade. Ainda bem, mas não chega. Mais do que e-mails e reuniões, quero acreditar que nos faltam momentos de conversa, em contexto profissional. Conversas onde não estejamos apenas a defender um ponto de vista, a vender uma ideia ou a procurar visibilidade. Conversas que nos permitam ligar-nos uns aos outros e, através dessas ligações, conseguirmos viver e trabalhar bem, durante o tempo que passamos “juntos”.

Para isso, o lucro e o crescimento não podem ser as únicas ou as causas maiores das organizações. Se pôr as pessoas em primeiro plano soa bonito mas é tantas vezes falso, experimente-se colocar as pessoas e os números no mesmo patamar, desde que não confundamos pessoas com números.

Assumamos uma perspectiva orgânica e não mecânica/matemática de crescimento

O mundo não vai bem. Estamos a quebrar as suas fundações7. Não é normal, o que passou a ser normal8. Parece-me claro que os “mínimos choques viáveis”9, o tipo de “choque” necessário para imprimirmos mudanças fundamentais e disruptivas que nos permitiriam preparar ou evitar cenários trágicos como, por exemplo, a protecção do nosso planeta e da nossa espécie de nós próprios, ainda não foram percebidos ou valorizados como tal.

Este ano participei no World Gathering organizado pela Planetiers e percebi que quem se dedica a pensar e a trabalhar, com base, e tendo como fim a sustentabilidade, a regeneração e a circularidade, já encontrou e leva muito a sério os “choques” que estão à vista de todos. Só não os vê quem lhe convém não os ver pois essa cegueira protege interesses demasiado valiosos para serem postos em causa.

Está na altura de o mundo corporativo levar a sério estes conceitos, incorporando-os nas suas fundações materiais e imateriais. Está na altura de deixar de fazer uma utilização utilitária e oportunista dos temas ESG10, considerando essas iniciativas apenas como artifícios de comunicação que servem para manter as suas imagens públicas limpas, na superfície.

Os nossos sistemas económicos, governamentais e corporativos sustentam-se em perspectivas quantitativas, mecânicas, de crescimento. Em que os Valores apenas valem quando são traduzidos em números. Em que só o crescimento contínuo e infinito é sinal de “saúde”, de progresso e de sucesso. Todos estes sistemas pretendem servir pessoas. Certo é que todos estes sistemas artificiais se servem de pessoas e de outros tipos de recursos naturais. Somos organismos a alimentar uma “máquina”. Na Natureza, até onde se consegue saber, nada cresce continuamente nem para sempre. O conceito de crescimento, quando aplicado a qualquer organismo natural, implica um declínio, uma extinção e uma regeneração.

A busca pelo Santo Graal transformou-se na demanda pelo crescimento económico. Para nosso bem, a imortalidade é impossível, por muito que alguns bilionários nos queiram fazer acreditar no contrário. Pudera! Com tanto dinheiro seria de esperar que conseguissem vencer a morte e talvez se e nos convençam de que serão capazes. Não acreditemos.

Abulemos as chefias intermédias

Tenho trabalhado bastante com chefias intermédias (middle management) e tenho encontrado cada vez mais provas que me levam a crer que estas pessoas estão tramadas. Ensanduichadas entre as exigências das “chefias de topo” e das administrações, e as pressões das pessoas da “linha da frente”, têm de agradar a gregos e a troianos, missão que a sabedoria popular nos diz ser impossível.

Há dois claros lados em relação a este ponto. Os que defendem que estes cargos deveriam desaparecer11, tornando as organizações mais chatas (flat), as equipas mais autónomas e as hierarquias mais esbatidas. Do outro lado está quem acredita que sem essa camada de liderança intermédia as organizações nunca funcionariam12 e que há riscos sérios em querer um achatamento da pirâmide hierárquica.

Proponho uma via alternativa. Uma reforma das pessoas em cargos de liderança que são verdadeiros bloqueios às mudanças, difíceis e significativas, que precisamos de implementar. Qual a única coisa mais difícil de mudar do que uma convicção? É uma convicção de quem se senta num lugar de poder. Experimente-se abolir as lideranças intermédias mas despedindo as que estão acima dessas e cujo pensamento não acompanha as necessidades dos tempos e das outras pessoas.

Definamos e defendamos causas, em vez de propósitos

Já escrevi sobre os cuidados a ter com os propósitos, que tantas pessoas e organizações estão desesperadas por encontrar e perseguir13. O que não escrevi, por não ter considerado na altura o seguinte ângulo, é que a aparente obsessão com “os propósitos” parece derivar de outras que persistem no zeitgeist, teimosamente. Refiro-me à necessidade de “estar e ficar tudo bem”, à “positividadezinha”. Também está bem se não está tudo bem. Felizmente fala-se mais nisto. Nem sempre da melhor forma mas não se pode ter tudo nem acertar logo à primeira, não é?

Há muitas vantagens no pensamento negativo14. Até há vencedores de prémios Nobel, como o Daniel Kahneman - que ganhou o seu pelo trabalho realizado sobre os processos de tomada de decisão e sobre a capacidade de julgamento/raciocínio em contextos de incerteza - que defende que o objectivo dos governos, dos países, deveria ser reduzir ou evitar a pobreza ou o sofrimento e não o crescimento económico ou o aumento do bem-estar. Os últimos só depois dos primeiros.

Em vez ou além de definirmos propósitos bonitos, vistosos e inspiradores, experimentemos encontrar causas cuja defesa valha a pena e permita diferenças significativas. Desenvolvamos a nossa “capacidade negativa”15. Antes de procurar um lugar confortável que não existe ainda, noutra tentativa de prever e controlar o futuro, olhemos para o desconforto e o sofrimento que existe “à nossa porta”, ou mesmo dentro de casa, e façamos por os diminuir ou eliminar.

Deixemo-nos de tretas

Por favor, deixemo-nos de tretas. Tanto do que está errado no mundo deriva de tretas e da dificuldade em discernir o que é do que não é treta. Adiro completamente à ideia do Harry Frankfurt que preconiza no seu livro On Bullshit que quem diz tretas não tem qualquer interesse nem respeito pela verdade. Quem mente pelo menos valoriza a verdade a ponto de a esconder. Quem diz tretas não se importa com o facto de o que diz ser verdadeiro ou falso, tendo tão-somente interesse em fazer com que quem escuta “compre” o que está a ser dito.

O mundo corporativo vive de transacções. Pena é que aplique o mesmo em relação a ideias e a relações humanas. Pode ser demasiado pedir a um “tretas” que não as diga. Mas penso que podemos aumentar os nossos níveis de atenção e capacidade crítica para as podermos detectar e desmontar16.

Nota final

O texto já vai longo e, mesmo assim, deixei muitas adivinhações por escrever, neste inútil exercício prospectivo. No limite criei uma lista de próximos artigos onde poderei explorar e tornar ainda mais evidentes as ligações entre estes e outros temas. A si, cara leitora ou caro leitor, desejo-lhe um bom futuro. Ou um menos mau do que o passado e do que o presente, vá.

João Sevilhano

Partner, Strategy & Innovation @ Way Beyond.

https://joaosevilhano.medium.com/
Anterior
Anterior

Devolvam-me as minhas dificuldades

Próximo
Próximo

Não, isto não é normal