Não, isto não é normal

Das ideias que mais retive dos meus tempos de estudante estão as que encontrei e formei a partir da discussão que procura distinguir o que é “normal” do que é “patológico”. É dos tipos de problema que ainda não tem solução cabal, como todos os importantes problemas filosóficos (ou humanos).

Lembro-me sobretudo de dois autores conterrâneos, embora de gerações diferentes. O primeiro é um dos “grandes” da sociologia, Émile Durkheim, que viveu entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século seguinte. De forma sumária, Durkheim deixou-nos como legado a ideia de, numa sociedade, o crime ser “normal, necessário e útil”. Sem crime uma sociedade não teria como fazer evoluir a sua moral, as suas leis e regras. Para fundamentar este postulado, argumentou que a dor e o sofrimento são muitas vezes encarados como sinais de doença apesar de existirem patologias graves indolores. Por outro lado, existem situações patologicamente pouco importantes que provocam dor extrema e há ainda casos em que a ausência de dor ou o prazer são sintomas de enfermidade. Para o mesmo autor, a doença pode mesmo ser uma fase de adaptação a condições exteriores em mutação. Portanto, o estado patológico é útil em alguns casos. Por exemplo, quando somos vacinados injectamos uma pequena “quantidade de doença” para que o nosso organismo se torne apto a combatê-la mas, no fundo, não é um facto anormal já que faz parte da normalidade tomar vacinas.

O segundo autor francês é o Georges Canguilhem, um médico e filósofo que nasceu no início do século passado. Foi colega de escola de Sartre e orientador de doutoramento de Michel Foucault, pensadores que o ultrapassaram em notoriedade. Canguilhem foi também um rebelde e activista, tendo feito parte de vários movimentos pacifistas, contra-poder e até da Resistência, durante a Segunda Grande Guerra. Defendeu a sua tese de doutoramento em Medicina sobre “O normal e o patológico”. Na linha de Durkheim, preconiza que a “patologia faz parte da normalidade”; que existe patologia na normalidade e normalidade na patologia. Conhece alguma pessoa que nunca tenha estado doente? Pois, estar doente, de vez em quando, faz parte da normalidade. A trama adensa-se quando a doença passa a ser a normalidade. É normal ter dores musculares depois de uma sessão de exercício mais intensa. Não será normal se essa mesma dor persistir por semanas, meses ou anos. Quanto mais tempo doer maior a probabilidade de se se habituar a viver nesse estado levando a um outro, o da resignação.

Temo que este seja o estado em que o mundo e o mundo do trabalho se encontram: normalmente doentes, a ponto de já ser muito difícil distinguir o que é saúde ou patologia. A dor já não é só parte da normalidade. A dor é o normal. Que doenças tem o mundo? E o mundo do trabalho? Várias. Não são necessárias atenção e perspicácia extraordinárias para se conseguir nomear algumas. A obsessão com o crescimento, tudo tem de “escalar”; o aumento galopante de casos de burnout e de outras psicopatologias; a erosão da consciência ecológica e ética; as evidentes alterações climáticas; as desigualdades económicas que se extremam; o desejo constantemente adiado ou frustrado de ter vida além do trabalho; a pressão constante que resulta de tudo isto e de muito mais. Estas são apenas algumas das enfermidades do nosso tempo. Será correcto dizer assim, “do nosso tempo”? Há quanto tempo vivemos assim? Há tempo suficiente para esta ser a normalidade? Talvez. Parece.

Parece também haver sinais de real vontade ou, melhor, necessidade de mudança. Fenómenos como a Great Resignation ou o quiet quitting parecem surgir de uma base contestatária. A “grande resignação”, curiosamente, não me parece ser um movimento de pessoas resignadas. Pelo contrário, parece ser uma espécie de rebelião contra culturas organizacionais tóxicas. Os “desistentes silenciosos” não são novidade, como a moda quer fazer passar. É um fenómeno antigo1 e mais do que comprovado2 mas a novidade está em ressurgir com uma intenção de rebeldia.

Expressões como estas tornam-se virais, multiplicando-se de forma descontrolada por publicações no LinkedIn, nos meios peso-pesado dos negócios e nas conversas do dia-a-dia. Também se fala e se escreve muito sobre saúde mental e sobre o bem-estar das pessoas no trabalho. É uma das grandes doenças deste mundo: a tagarelice.

A filosofia considera a tagarelice uma doença muito difícil de curar. A sua cura, a conversação, exige ouvintes: mas os tagarelas não ouvem nada porque estão a tagarelar. A primeira maldade que esta incapacidade de ficar em silêncio produz é a inabilidade para escutar. (…) Porque as orelhas (dos tagarelas) não têm, certamente, passagem que leve ao cérebro mas apenas à língua.

- Plutarco

Toda a gente, de repente, tem algo de especial a dizer sobre estes importantes assuntos e o que há a dizer tem de ser dito com pressa, para se chegar primeiro. As pressas são inimigas da escuta, da observação, da introspecção e da reflexão, que são os ingredientes da ponderação, da sensatez e da consideração. As boas conversações também se fazem sem pressa.

Toda a gente tem direito a falar o que quiser. Não é o que coloco em causa. Em causa está se o que se diz contribui ou não para manter esta doente normalidade. Acredito que é importante tomarmos contacto ou descobrirmos uma faceta rebelde, até activista, para poder contribuir e influenciar as mudanças desejadas. Contudo, o activismo está frequentemente próximo do fundamentalismo que, tal como a tagarelice, também padece de pressa. Neste caso a pressa está em ter e manter certezas e rejeitar qualquer ideia fora da doutrina seguida.

Para não cair no ridículo, o activismo tem de ser fundamentado e não fundamentalista. Nestes tempos, a coragem e a inovação não residem na necessidade de querer acompanhar a alta velocidade a que quase todos andamos. Criemos espaços para conversar, para observar, para reflectir e para construir em conjunto, sem estarmos obcecados com os resultados dessas iniciativas, com as soluções de que precisamos. Custa, é certo, contrariar o “espírito dos tempos”. Como dizemos na Way Beyond, “não conhecemos as melhores respostas de antemão mas sabemos como as procurar, em conjunto”. Escrevamos e conversemos sobre estes importantes assuntos, sim, mas com calma.

Os tempos são urgentes; abrandemos3.

- Bayo Akomolafe

João Sevilhano

Partner, Strategy & Innovation @ Way Beyond.

https://joaosevilhano.medium.com/
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