Heráclito, a resiliência e a Diretora Financeira

Por todo o lado se ouve e se lê a palavra resiliência, talvez porque os tempos estão difíceis. Talvez por isso eu ouça a palavra em português, em inglês, em francês e noutras línguas que eu não entendo muito bem. Talvez por vivermos nestes tempos tão conturbados as pessoas desejem ter uma característica que lhes permita enfrentar as adversidades e retomar depois a sua vida sem quebra de foco. Um engenheiro explicou-me que a resiliência dos materiais era a capacidade de um material ser sujeito a deformação e depois retomar a sua posição original. Era também a característica de uma rede eléctrica que podia abastecer um ponto através de diferentes caminhos.

A primeira ideia, parece ser a do bounce back , de regressarmos ao estado anterior depois de suportarmos adversidades. Ora numa conversa com um amigo meu, investigador e professor de psicologia, disse-me ele que achava essa ideia inadequada do ponto de vista psicológico, porque depois de vivermos uma experiência não há bounce back, nós não voltamos ao passado, a ser de novo quem já fomos. Somos outros depois de cada experiência, agradável ou desagradável. Para além desse meu professor, outra pessoa também com um pensamento interessante, um grego de nome Heráclito do séc. V a.C., disse que não é possível “banharmo-nos duas vezes nas mesmas águas do rio”.  Porque “tudo flui” sem cessar, terá dito.

Vejo assim a resiliência mais como uma ideia da nossa transformação conforme superamos adversidades, refletindo. É pela reflexão que podemos transformar o nosso modo de ser, de estar no mundo, de nos vermos a nós próprios, aos outros e às situações que vivemos.

Vem isto a propósito de uma história (verídica, mas com nomes falsos para garantir a confidencialidade) com que entrei em contato na minha atividade profissional como psicólogo das organizações.

A Dra. Júlia, Directora Financeira de uma empresa, contou-me que, em jovem, ela, que sempre tinha sido boa aluna, reprovou a uma cadeira no último ano do ensino secundário. “Namoricos, coisas da idade, sabe?”. Mas a Mãe não aceitou. “Podes esquecer a faculdade, foste preguiçosa, foi culpa tua, e agora vais mas é trabalhar, para saberes como é!”

E foi. Para a empresa onde a Mãe trabalhava como chefe de linha na produção. Com quem se passou a cruzar várias vezes por dia, de balde e esfregona na mão, a caminho das casas de banho. Limpava as retretes e os urinóis, lavava o chão cheio de urina e suportava o descaso a que uma mulher das limpezas era votada, a arrogância dos homens que nem respeitavam o sinal “em limpeza” e que troçavam dos seus protestos.

Chegava ao fim do dia e o cheiro às casas de banho não lhe saía das narinas. Continuava a respirá-lo. E quando o cano grande do esgoto principal entupiu foi ela que teve de avançar para resolver a situação. Essa náusea acompanhou-a durante anos e renascia quando por alguma razão se sentia mais em baixo. E tudo era vivido por ela como o castigo que merecia, a que se submetia voluntariamente, pelo grande desgosto que causara à Mãe, como esta lho recordava regularmente.

Até que um ano depois, uma chefe de linha de outra área da fábrica foi ter com ela e lhe disse:

”Olha, Júlia, eu tenho conversado bastante contigo e acho que devias mudar de trabalho. Não gostavas de mudar?”

“Sim, claro podia ir para a produção?”

“Não, Júlia, não é para a produção. Tu és muito inteligente e trabalhadora, tu és para outros vôos. Sabes, o meu marido fez um curso técnico de Qualidade. Há outros semelhantes, noturnos, gratuitos. Acho que podias ir ver essas hipóteses”.

E foi e viu e fez o curso de Introdução à Contabilidade. Mudou de empresa. Foi administrativa no Departamento de Contabilidade. Já no seu apartamento, independente, com o seu dinheiro, fez a licenciatura em Gestão à noite.

“Estou imensamente grata àquela senhora que me disse que me via noutro trabalho. E eu também passei a ver-me noutro trabalho. Mudou tudo para mim. A sério, mudou tudo. Mudou a minha vontade.”

Como o meu amigo engenheiro me explicou, haverá também no plano humano a resiliência (ou resistência?) como característica individual, como no “And still I rise”, da poeta Maya Angelou. Mas acredito que nas nossas redes humanas uma pessoa pode contribuir para que outra supere as suas adversidades, vendo-se a si própria de outro modo. Em que cada um de nós pode contribuir para a resiliência dos outros, através do afecto, dos laços que os seres humanos, quando no seu melhor, criam uns com os outros.

Original publicado no LinkedIn do Paulo Baptista da Silva, parceiro de longa data da Way Beyond, professor residente e mentor no WBCC Avançado.

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