Os vendedores de vendas

Os piores e os mais perversos de nós são os que se vendem e se vendam de uma só vez. Talvez se deixem comprar, precisamente, por não conseguirem ver. As vendas de pouco servem a não ser para prolongar e para garantir o conforto da escuridão. Este tipo de cegueira alimenta o consumismo de ideias falsas, de tretas e de “verdadezinhas” superficiais. Só estes conseguem ver profundidade nas vendas, como um cego a olhar para um poço.

São os piores e os mais perigosos. Não o são, necessariamente, pelo mal que podem fazer. São-no porque apenas farão bem por acaso; porque compram cegamente o que vende quem produz um bem postiço e descartável. Assim o ciclo nunca terminará. Da seguinte forma se perpetua: os que se vendem a vendedores de vendas vendados ficarão.

O problema das vendas, como o de todos os materiais, mesmo os mais resistentes, é que se gastam, estragam-se, eventualmente. Por isto os vendidos-vendados alimentam continuamente o sistema da cegueira capitalista. No mínimo, uma forte miopia forte será, tanto voluntária como inconsciente. “Em terra de cegos quem tem um olho é rei”, diz-se. Mesmo com falta de vista, se se viver no meio de quem escolhe não ver, vendo, é-se snobe, parvo, arrogante ou “intelectual”, por não fazer parte da maioria.

Mas não a deixarei, cara leitora, cega em relação ao significado destas palavras. A intenção que lhes coloco é a oposta. Servem para lavar a vista, para nos podermos livrar das vendas, juntos. As palavras que escrevo são sobre as pessoas que compram as ideias sem as julgar, sem as passar pelo crivo da crítica e do senso. Não me interprete mal, querido leitor. Estas não são palavras defensoras da intransigência nem da inflexibilidade. Defendem a aceitação mas não de forma incondicional. Quem aceita incondicionalmente permanece vendado, apesar de comprar a ilusão de passar a ver mais e melhor. Aceitar, verdadeiramente, implica saber que se está condicionado, sempre. Aceitar com verdade implica assumir que o que é verdadeiro pode deixar de o ser; que todas as verdades podem passar a ser falsidades, quando uma melhor e mais actual se descobre ou se inventa.

Os tais vendidos são os incapazes de ver a falsidade das suas verdades absolutas e indeléveis. São os que se cegam pela necessidade tornada crença de estarem sempre certos. Estes são os que acumulam verdades sem nunca se entregarem à possibilidade de estarem errados. Como poderiam fazê-lo? Para esses, todos os que não compram vendas como as suas são mentirosos. Para esses, quem procura espreitar para encontrar a “verdade verdadeira” estará a mentir ou a complicar.

Os que procuram ver para lá das vendas são os que sabem que começam vendados. É exactamente por conhecerem a sua limitação que conseguem ver um pouco mais e um pouco melhor. São os que não se colocam na posição de vendedores; são os descobridores e construtores; são os que escolhem ver as ideias como ideias, julgando a verdade e a mentira como conceitos transitórios, temporários e sempre relativos. Julgam como os outros, claro, mas fazem-no enquanto julgam os seus próprios juízos. São os que não deixando de ser juízes em causa própria conseguem tomar as causas maiores do que os próprios.

Escrito para o Link to Leaders a 27 de Junho de 2022; publicado a 15 de Agosto de 2022.

João Sevilhano

Partner, Strategy & Innovation @ Way Beyond.

https://joaosevilhano.medium.com/
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