Devolvam-me as minhas dificuldades

Não sabia muito bem a que se devia o convite do meu ex-aluno Emanuel (chamemos-lhe assim) para conversar com ele sobre a venda de produtos informáticos para gestão de pessoas.

A sua start-up estava num espaço físico inovador, elegante, amplo, numa zona sofisticada de Lisboa. O Emanuel começou por me dizer que antes de ter desenvolvido este novo produto tinha tentado um outro mas era “muito desafiante”. Enfatizou num tom desanimado “muito, muito desafiante e acabámos por desistir”.

Fiquei ali uns momentos, perplexo, a tentar perceber a frase, sentindo que algo não batia certo aos meus ouvidos, mas sem identificar o quê.

Depois percebi, era a palavra “desafio”. Segundo Emanuel, o “desafio”, que aparentemente por ser excessivo, era inultrapassável.

Depois da reunião dei por mim a refletir sobre a conversa e apareceram-me as palavras que faltavam no discurso do Emanuel: “difícil”. Dificuldade. Adversidade. Problema. O anterior projeto tinha sido abandonado por ser muito… difícil (“desafiante”).

Percebi que era uma norma da nova ortodoxia do discurso corporativo: não há dificuldades nem problemas, apenas “desafios”. Esta substituição deveria assegurar ânimo e motivação a quem quer que seja.

Verifiquei que várias pessoas – e organizações – faziam esta substituição forçada de “dificuldade” por “desafio”, que na prática impede que a outra pessoa possa expressar os seus sentimentos face às adversidades. Como se isso fosse inconveniente, como se não fosse profissional. É disto que falamos quando falamos de “positividade tóxica”, que silencia o negativo, num truque de autoengano.

Nada disto me parece fazer sentido. Eu preciso de ser autêntico comigo próprio, de reconhecer as minhas emoções com sinceridade para poder agir conscientemente e com liberdade. A positividade tóxica impede a minha liberdade e troca-a por um sorriso de plástico.

Para arregaçar as mangas e ter coragem, preciso de aceitar que num primeiro momento tive medo e que apesar disso me reergui e fui lutar, se calhar até com medo e coragem ao mesmo tempo.

Por isso, por favor, tenham a gentileza de me devolverem as minhas dificuldades para que eu possa escolher livremente os meus desafios.

Original publicado no LinkedIn do Paulo Baptista da Silva, parceiro de longa data da Way Beyond, professor residente e mentor no WBCC Avançado.

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