Para quando um equivalente ao #MeToo para o tempo?

A decisão de escrever este texto não foi isenta de tormento e de dúvida. O respeito que tenho pelo tema e o receio de ser mal interpretado fizeram sentir o seu peso. Com o progresso pandémico do vírus, que rapidamente se espalhou pelo mundo e nos está a mudar as vidas e as rotinas de forma radical, a indecisão tomou proporções ainda maiores. Escrever sobre algo que não contenha “COVID-19”, “pandemia”, “como lidar com os filhos” ou actividades para estes, “trabalho remoto” ou “teletrabalho”, uma qualquer lista com actividades, dicas ou conselhos, nos dias que correm, pode parecer sobranceiro ou desligado da realidade. Pior, pode aparentar que eu próprio estou acima ou além das contingências da vida, o que não podia estar mais afastado da verdade. Sem certezas e com as mesmas dúvidas, aí vamos.

O movimento #MeToo começou, felizmente, há mais tempo do que minha vontade de escrever sobre o tema. Tudo se precipitou depois de ver a extraordinária série “The Morning Show”. Confesso que tive bastante resistência a começar a ver esta série. Era a “bandeira” de um novo serviço de *streaming* que teve, até agora, opiniões mistas, para ser simpático. Além disso, os tipo e estilo da série eram bastante distantes das séries policiais nórdicas que usamos para entreter os serões dos dois adultos cá de casa. Em cada episódio que víamos, os criadores, os produtores e as extraordinárias performances de praticamente todo o elenco provavam que as minhas resistências eram infundadas e preconceituosas. Esperando não estragar nenhuma surpresa, a série aborda o tema do assédio sexual e do abuso de poder no meio televisivo. A forma como está escrita faz-nos empatizar facilmente com as vítimas e, em simultâneo, fez-me duvidar das intenções e das acções dos agressores; deixou-me a questionar sobre quem seria cúmplice. Uma das hipóteses que ainda hoje me ocupa espaço e tempo de reflexão é: neste tipo de casos e situações, nestes ambientes, todos seremos potenciais cúmplices?

As insinuações, os piropos e os toques inadvertidos, indesejados e indiscretos, sempre fizeram parte do folclore do mundo do trabalho. Todos nós já ouvimos histórias de quem se aproveitou de posições de poder para entrar, sem convite nem autorização, na intimidade de outros. A coragem de algumas pessoas – mulheres na sua esmagadora maioria porque, de facto, os homens ainda ocupam a maior parte dos lugares de poder – tornou impossível ignorar esta aterradora realidade. Nalguns contextos, a banalização deste tipo de comportamentos inadequados e predatórios, alimentada pela desigualdade entre géneros que insiste em permanecer, leva à sua normalização. Esta “normalidade” torna cúmplice quem nela habita, pela simples ignorância. Fechar os olhos e a boca, a inactividade, o medo de quebrar o politicamente correcto, podem acabar por revelar-se uma violência extrema.

Enquanto a série aborda o abuso de poder sob a forma sexual, com base na minha experiência pessoal e, sobretudo, profissional, encontrei uma clara analogia com outra forma ou expressão de abuso de poder: o abuso sobre o tempo dos outros. No mundo do trabalho, a penetração dos chefes e das culturas organizacionais no tempo das pessoas não é folclore. É uma realidade há muito tolerada e, até, alimentada e premiada.

No que respeita ao tempo não há piropos mas há “bocas”; quem sai dentro do horário ou trabalha “apenas” durante o tempo que está estipulado no seu contrato ainda é olhado de soslaio. Pelo contrário ainda se associa a qualidade do trabalho e do trabalhador à quantidade de tempo que passa a trabalhar. Não há convites inadequados mas há reuniões marcadas para a hora de entrada nas escolas ou para as seis da tarde, ou depois. Não há toques “debaixo da mesa” mas há documentos essenciais que são enviados à sexta-feira às dez da noite para serem discutidos numa reunião de segunda-feira às nove da manhã.

Outro ponto de ligação que encontro nos dois tipos de abuso de poder tem que ver com uma infeliz tendência para acusar as vítimas. Neste tipo de culturas, em que o respeito e a ética são parcos, uma vítima de assédio sexual pode facilmente ser chamada de usurpadora porque aceitou um cargo mais alto ou prémio qualquer para se calar. Isto, claro, apesar de não haver desejo, consentimento nem negação explícitos. Pelo contrário, tais situações tendem mesmo a ser traumáticas. Da mesma forma, uma pessoa que anuncie que não está a ser capaz de gerir a sua vida familiar devido a uma permeabilidade forçada do trabalho nesse domínio é muitas vezes alvo do encobrimento e do desdém de uma cultura de silêncio que pode ir até à desvalorização das suas capacidades: “não consegue organizar-se; não acompanha o ritmo; não tem as competências, a motivação ou a dedicação necessárias para esta função”, por exemplo.

O #MeToo tem sido eficaz ao levantar o véu de práticas, no mínimo, reprováveis. Não tem sido tão eficaz, ainda, na mitigação das diferenças e desigualdades entre géneros. Se no assédio, no abuso e nos crimes sexuais os agressores são tipicamente homens, no caso do tempo tal poderá ser verdade apenas porque ainda há mais homens a ocupar cargos de poder. No que respeita aos abusos em relação ao tempo parece haver menos distinção entre géneros. Se este movimento, apesar de tudo ainda recente embora evidente e forte, esbarra nas resistências dos preconceitos instituídos, apenas é possível imaginar o que será necessário para desmascarar o abuso que muitos de nós fazemos ou com que compactuamos em relação ao tempo que não é nosso.

Nos dias que correm será ainda mais fácil esta cultura de abuso evidenciar-se, agora que estamos confinados às nossas casas, muitos com a família como companhia. Tenho ouvido pessoas – amigos e clientes, por exemplo – que passaram a trabalhar mais horas agora que estão em teletrabalho. Reuniões que são marcadas sem intervalos e a expectativa ou mesmo sugestão que “agora que está em casa até pode aproveitar melhor o tempo”. Para quem? Para quê? A que preço?

Esta situação que estamos a viver exige-nos muitas mudanças. Espero que uma delas, a seu tempo, que deverá ser curto, seja a do respeito pelo tempo dos outros.

Escrito para o Link to Leaders a 3 de Abril de 2020; publicado a 14 de Abril de 2020‌.

João Sevilhano

Partner, Strategy & Innovation @ Way Beyond.

https://joaosevilhano.medium.com/
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