Voltemos a querer ter e ser (bons) chefes
Gastam-se milhares de milhão de euros em desenvolvimento em liderança1. A escolha do verbo não foi inocente. Perder, desperdiçar ou malbaratar passariam também a ideia. A bem da transparência, este que lhe escreve é um dos mais-que-muitos que se alimentam desse grande e apetitoso bolo, apesar da infinitésima parcela que lhe toca.
Passemos para outro tipo de números. Experimente digitar a palavra “liderança” no mais conhecido motor de busca. Registe o número de entradas que o sistema lhe devolve. Repita a operação para o mesmo termo depois de o traduzir para a língua inglesa: “leadership”. Corro poucos riscos se afirmar que os números que lhe surgiram no ecrã são dos que nos exigem que os olhemos com atenção para os conseguirmos dizer por extenso. Muito se diz e escreve sobre o conceito. Demasiado para ser verdade, pois “quando a esmola é muita, o santo desconfia”. Há até, imagine-se, coisas que se escrevem sobre os problemas com esta indústria2, tal como este texto. Pena é que não consigam evitar o tipo de conteúdo que parecem querer criticar3. Propõem-se novos modelos, novas teorias e novos métodos, mas parecem apenas conseguir passar a mensagem de quem anda à procura de trinchar e trincar fatias maiores do tal bolo. Assim a pescada que abrira a boca volta a morder o rabo. Espero conseguir não encontrar o mesmo fim.
Por conhecer um pouco desta “indústria”, por ter contacto com tantas tretas pseudo-profundas4 proferidas tantas vezes por pseudo-sábios, escrevo estas palavras onde me confesso-me desencantado e frustrado pelos amálgamas de ideias veiculadas por palavras airosas, que são demasiadas vezes aéreas. O ar que se inspira aí não é inofensivo. Pode ser inebriante ou até tóxico. A pressão que os consumidores destes conteúdos sentem agiganta-se a cada vídeo, artigo ou livro que é lançado; a cada programa de desenvolvimento que é desenhado ou palestra que é ministrada.
A quem lidera hoje exige-se que conheça o assunto que trata, que seja competente e saiba pôr “as mãos na massa” quando é necessário, que oriente e treine outras pessoas, que cuide delas, que saiba adaptar-se, que saiba lidar com a pressão, que tenha visão e saiba definir estratégia, que tenha o dom da oratória, que tenha energia e entusiasmo, que saiba levantar-se depois de cair e ajudar os outros a fazer o mesmo, que se ria perante a adversidade e que supere as expectativas e os limites. Poderia continuar mas fiquei cansado com tanta aspiração. Quão difícil é encontrar numa pessoa todos estes traços e todos os demais que ficaram de fora por cansaço a mais? E mantê-los consistentes? Não é fácil, até porque muitas destas premissas são vagas, imprecisas e intangíveis. Também é por isto que tanto se gasta em fábricas de líderes: se não há, se é difícil de encontrar, inventa-se5, ao bom jeito humano.
Por tudo isto, “precisamos de salvar a liderança das pessoas da liderança”6, como escreveu a Megan Hustad no título do provocador e esclarecido artigo publicado recentemente no Journal of Beautiful Business. Dando um passo adiante, acredito que urge salvarmos os “líderes”, sobretudo as pessoas que ainda não estão maculadas pelas doutrinas vigentes, da liderança.
A liderança e os líderes até à linguagem fazem mal, como nos adverte Manuel Monteiro no seu livro “Por amor à lingua”. Primeiro, seduzem os amantes de tretas, que invariavelmente gostam de usar palavras estrangeiras ou de inventar novas7. Segundo, tornam a linguagem mais pobre, menos precisa, fazendo desaparecer outros verbos e nomes que não nos fazem duvidar tanto e outros verbos que indicam acções mais concretas e consequentes. Coordenar, dirigir, delegar, ordenar, perguntar, escutar, sugerir, discutir, conversar, aconselhar, treinar, demonstrar, aprender, comandar não devem ser substituídos por “liderar". Quando muito, deverão ser usados para indicar acções de chefes, coordenadores, dirigentes, directores ou cabeças8.
Tantas vezes oiço pessoas dizer que não querem ser vistas como chefes. Querem sentir-se e ser reconhecidas como líderes. Percebo que tal meta seja apetecível para os/as que almejam ser perfeitos/as, com todos os grandes riscos que decorrem dessa demanda. Também há quem se deleite na preguiça pois, pela vacuidade e imprecisão do conceito, pode significar que se consegue atingir o patamar de “especialista em generalidades e banalidades”, sem a (pre)ocupação em imprimir consequências práticas. Não parece ser difícil ter um determinado tipo de sucesso quando se adopta essa fórmula. E há ainda os/as caça-poder, que gostam dos títulos brilhantes e do reconhecimento gratuito, sem interesse pelo percurso e todo o interesse pelo lugar onde se aterra.
Curiosa e felizmente, ainda oiço muita gente a elogiar antigos/as chefes, a vê-los/as como referência e até a usar a palavra com carinho. Aliás, quando nos queremos referir a alguém que nos chefia não dizemos que essa pessoa “é o/a meu/minha líder”. Dizemos que é o/a nosso/a chefe. Deixemos de querer ser líderes, de quem poucos se lembram. Fazem-nos falta bons/as chefes9, que são mais fáceis de encontrar e de ensinar. Quando os/as encontramos ficam na memória.
Escrito para o Link to Leaders a 3 de Dezembro de 2021; publicado a 15 de Dezembro de 2021.
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Segundo o website Training Industry ↩︎
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Leadership Development Is A $366 Billion Industry: Here’s Why Most Programs Don’t Work ↩︎
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“Chamar os bois pelos nomes” – Parte 2: De banalidades a barbaridades ↩︎
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Aqui, caro/a leitor/a, deve encarar esta frase considerando o duplo sentido da palavra “inventar”: criar algo e fingir. ↩︎
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“Chamar os bois pelos nomes”: o caso do jargão empresarial ↩︎
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Não sendo um fenómeno novo, tenho visto cada vez mais “head of qualquer coisa" como títulos de posições em organizações. ↩︎
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Volte à nota #6 para uma excelente descrição do que são bons chefes. ↩︎