Esta mudança está diferente
Arranjei um lugar, temporário, para a bicicleta na casa nova. Temporário porque, primeiro, não posso oferecer um quarto de dormir a uma bicicleta e, depois, porque planeei usá-la em todos os dias seguintes para pequenos ou grandes passeios. Andar de bicicleta é das coisas que mais gosto de fazer.
Era o que fazia em miúda, tímida e com poucos amigos, enquanto a minha irmã passava dias inteiros com os dela e chegava a casa tão estoirada quanto alegre, incrédula por não querer juntar-me a eles.
Andar de bicicleta foi também o que fiz, não tantas vezes quantas gostaria, nos últimos anos, umas vezes sozinha, outras acompanhada, mas sempre com o espanto de quem sabe que o que vai fazer, vai fazer-lhe bem. E, apesar disto, a bicicleta está, há cinco meses, exactamente no mesmo sítio em que a pousei quando a mudei de abrigo: encostada a uma parede, com os pneus em baixo, cansados de esperar por conhecer o bairro novo, as pessoas, os caminhos novos. O que eu tenho ganhado com isso é bastante discutível: dores no corpo e frustração por a nossa relação se resumir a olhares de soslaio - faz de conta que nem te vejo! - e um sem-fim de desculpas para não pegar nela e sairmos as duas porta fora.
O que é que isto importa no dobrar do Outono? Importa o mesmo que noutra altura qualquer do ano. E isto é também dizer que pode não importar nada. Só que isso depende, metaforicamente falando, claro está, de até onde queremos conhecer(-nos). Ainda se o não fazer nada e deixá-la ali significasse não pensar nela… #soquenao. Todos os dias lá vou, olho para ela, um dia por outro volto a encher os pneus para acabar por deixá-la no mesmo sítio porque “agora não me dá jeito nenhum sair contigo”. Como todos os dias olho para a balbúrdia que está a ser 2021, e me desafio: embora aproveitar para mudar? Embora fazer como dizia Santo António Abade “Em cada manhã digo ao meu coração: hoje começo.”
Afinal, o que é que acontece se eu não voltar a pegar na bicicleta? Bom, de trágico, nada, e também não será um drama. Mas digamos que depende da perspectiva. Consideremos que a nossa vida se vai construindo com determinadas características, modos de ser e de estar, hábitos e rotinas, crenças e regras que formam um determinado, chamemos-lhe, sistema. Uma alteração, por mais pequena que seja, cria entropia no sistema e necessidade de que se reorganize. E, não poucas vezes, perguntamo-nos por que raio é que não podemos continuar a viver do mesmo modo, quem sabe “fingindo”, ainda que inconscientemente, que nada aconteceu. O nosso cérebro habitua-se (demasiado e demasiado rápido) àquilo que já conhece. Então, qualquer mudança necessária pode, em determinadas alturas, parecer-nos impossível de concretizar, um esforço hercúleo, qual mito de Sísifo. O certo é que, apesar de não parecer, teimar para que o sistema se mantenha funcional nestas condições significa uma frustração e um gasto de energia infinitamente maiores do que se olharmos “com olhos de ver” e escutarmos o que (nos) está a acontecer, perguntarmo-nos do que precisamos e o que nos falta para vivermos novamente em harmonia, connosco e com o que nos rodeia.
Se fizermos sempre tudo igual, o que é que isso diz de nós, onde é que estamos, onde é que vamos dar? É que continuando a caminhada pelos caminhos que achamos que já conhecemos não só é enganador (se procurarmos bem, sabemos que os caminhos já não serão propriamente os mesmos), como nos arriscamos a não descobrir nada de novo, a encontrar constantemente argumentos e obstáculos que nos afastam da novidade que tem também a forma “tormentosa” do desconhecido, mas que nos permitirá dobrar mas não partir e, se partir, pelo menos não morrer. Afinal, “o que ainda não chegou é infinito”.
Mudar, à primeira vista, até pode parecer que não tem graça nenhuma. Pior, pode trazer-nos mais para a flor da pele a sensação de que não estamos preparados: agora não, amanhã. Agora, cheia de graça é a oportunidade de nos fazermos presentes, de nos lembrarmos de quem queremos ser, do que precisamos e do que não precisamos nem queremos ser ou ter por perto.
Há muitos anos, uma criança, bem pequenina, dizia-me mais ou menos isto “Oh Joana, eu quero que a minha vida seja sempre feita de dias diferentes”. Creio que há uns dias mo disse de novo, ainda que usando outras palavras: “amanhã, quando acordares, antes de saíres da cama, faz-te presente e põe no chão o pé que não costumas pôr todos os dias quando te levantas”. Para dizer a verdade, Zé, esqueci-me. Ao longo daquele dia pensei várias vezes que o faria no dia seguinte. Só agora me veio de novo à lembrança. Prometo que amanhã é o pé esquerdo o primeiro a ir ao chão.