Uma perspectiva sobre sustentabilidade

Não sou especialista, nem sequer mediano, no que concerne ao assunto “sustentabilidade”. Entendo na “óptica do utilizador”. A analogia com o mundo da informática não será completamente descabida, já que a humanidade parece ter, na sua maioria, uma perspectiva utilitária em relação à tudo a nossa volta.

Apesar da minha assumida ignorância, mantenho-me atento e cada vez mais crítico. É crescente a indignação que sinto em relação a mim, antes de mais, e em relação a muitas outras pessoas. Já não são só os comportamentos trogloditas - como deitar lixo para fora de um carro em andamento - que me indignam. Dei-me conta que começara a prestar atenção a fenómenos que antes eram invisíveis pela sua banalidade. Por exemplo, o papel gasto nos recibos infindáveis e de necessidade questionável que acompanham qualquer transação que façamos em presença. Mesmo quando dizemos que não queremos o papel, em muitos casos as máquinas não evitam vomitá-los. E nos restaurantes ou cafés onde há dispensadores de guardanapos? É ver grande parte das pessoas a tirá-los a uma velocidade que nem deixa contar quantas folhas de lá saem. Seja qual for o número, será demasiado alto. Será um número desnecessário. E a água? Como é possível que no século XXI, numa casa construída recentemente e com equipamentos modernos, a água de um duche demore 5 minutos a aquecer, desperdiçando litros e litros que cada vez serão mais preciosos? Ou que os sistemas de rega públicos estejam cheios de fugas e funcionem mesmo quando chove? Ou a utilização de água potável para fins recreativos? Não escrevo mais exemplos, por serem demasiados e por sentir irritação crescer em mim de cada vez que penso noutra qualquer situação que passei a reparar.

De forma análoga, a minha atenção também se tem debruçado sobre a forma como as empresas actuam sob o estandarte das siglas CSR (Corporate Social Responsability) e ESG (Environmental, Social and Governance). A história destas ideias deixou o terreno acidentado. Na origem da CSR, que agora foi substituída pela ESG, existem relatos escabrosos, que datam da altura da Revolução Industrial, onde as empresas distraiam as populações das localidades onde estavam as fábricas com brindes e oferendas, com o intuito de desviar a sua atenção das consequências nefastas de ter a indústria no local, incluindo as péssimas condições de trabalho dos operários. É o equivalente a roubar um doce a uma criança e comprar um saco de rebuçados para oferecer aos miúdos vizinhos.

Infelizmente, em muitos casos, as iniciativas feitas nos âmbitos da CSR e ESG fomentam mais desconfiança e descrença do que os seus contrários. Há situações em que são apenas operações “cosméticas” ou cujo objetivo é a promoção de uma imagem que não corresponde à realidade. Conheço até casos em que, apesar das óptimas intenções, as incoerências são gritantes. Uma empresa que reúne duas centenas de pessoas para recolher lixo e plástico de praias e como recompensa oferece bugigangas - canetas, crachás e impermeáveis - feitas de e envoltas em plástico descartável, sem sequer me ocupar com a ideia das condições de trabalho das pessoas que terão produzido tais instrumentos. Portanto, numa operação de limpeza de lixo e de plástico quanto lixo e quanto plástico se criou?

A minha ignorância não me permite discorrer muito sobre as métricas usadas para avaliar as preocupação e ocupação com a sustentabilidade de uma empresa. Mas suspeito que há efeitos mais visíveis, prementes e locais do que as emissões de carbono. Por exemplo, de que serve uma empresa ser carbon neutral [o inglês é propositado] se, por exemplo, as pessoas que lá trabalham são exploradas ou ficam doentes por lá trabalharem.

As crescentes atenção e irritação atiçaram o meu interesse e tenho lido, escutado e estado junto de pessoas que sabem muito mais do que eu. Há tempos, na conferência de 2022 Planetiers World Gathering, onde fui convidado a fazer uma muito breve intervenção, aprendi, entre muitas outras coisas interessantes e importantes que “o problema da sustentabilidade está na cabeça da maior parte das pessoas”; que muitos especialistas estão pessimistas por acreditarem que será difícil pessoas em número suficiente se aperceberem do seu efeito negativo no seu/nosso meio e, mais difícil ainda, mudar o suficiente para, no mínimo, minorar o mal já feito.

Coincidentemente, mais de um ano depois, quando cheguei ao local onde decorreu o The___Dream, o título da edição de 2023 do evento anual organizado pela House of Beautiful Business, a primeira pessoa com quem me cruzei foi e Renée Lertzman1. Por sermos ambos oradores na conferência e por termos chegado fortuitamente ao mesmo tempo, o acolhimento foi feito em simultâneo. Fiquei a saber que além de colega oradora era também colega psicóloga que tem dedicado a sua carreira ao tema da sustentabilidade, e que defende que é “a psicologia o factor definitivo que pode desbloquear acções ecológicas e climáticas importantes”.

Portanto, o grande problema da sustentabilidade será, antes de tudo, um problema de mentalidade, individual e colectiva. Não é apenas ser mais consciente do efeito que se tem no mundo, mas igualmente mudar a maneira como se pensa, para se poder mudar a forma como se vive. Vislumbro uma outra faceta da sustentabilidade, que talvez seja divergente da perspectiva convencional e que não resolverá directamente as emergências climáticas e ecológicas que todos temos em mãos, que tem que ver com as relações que estabelecemos com as outras pessoas. Será o legado que permanece por via dos contactos que vamos estabelecendo. Como deixaremos o “mundo interno” das pessoas com quem nos relacionamos? Que pegada psicológica, emocional e intelectual será a nossa? Esta é uma sustentabilidade das relações humanas, que se detectará pela qualidade relacional, psicológica, emocional, cognitiva e espiritual que fica na nossa memória e na dos outros.

Quem tem filhos, embora não seja um sentimento exclusivo da parentalidade, facilmente acede a esta (pre)ocupação com o seu legado. Algumas influentes teorias psicológicas deixaram no senso comum a sensação de que o que fazemos e não fazemos enquanto pais deixa marcas na estrutura psicológica, emocional e até cognitiva das nossas crianças. E há suficientes estudos que mostram que o desamor, a violência e, pior, a negligência têm efeitos catastróficos nas “fundações” de qualquer pessoa. E não é apenas de pais e mães para filhos e filhas. Tais efeitos negativos são transmitidos entre quaisquer pessoas, desde que estabeleçam algum tipo de relação, sendo claro que quanto mais significativa uma relação mais o mal (ou bem) potencial. Um exemplo bastante mediático, embora pertença ao mundo da ficção, é o que vemos acontecer na série “Succession”, em que os modelos relacionais transmitidos e agidos deixam marcas profundas em todas as personagens, que replicam ou amplificam, sem excepção e numa corrente sem fim, o mal que lhes é feito.

Tanto na sustentabilidade propriamente dita, como na sustentabilidade das relações humanas, os problemas encontram-se no conforto, na conveniência, no hábito, na gratificação imediata, no apego ao luxo desnecessário, no curto-prazismo, na mais-que-repetida-e-banal resistência à mudança, na ganância que leva à ilusão do crescimento infindável, na falta de empatia, na distância ou na excessiva proximidade. É conveniente fechar ou, pelo menos, semicerrar os olhos aos problemas que existem à nossa volta e ao nosso próprio contributo. Por vezes, dá jeito não ver a realidade com clareza, não vá deixar-nos deprimidos ou dar-nos ainda mais trabalho. Mais que conveniente, ver a realidade turva ou não ultrapassar uma camada superficial de compreensão poderão até ser atalhos para uma estratégia defensiva, de suposta manutenção da nossa saúde mental ou sanidade, de pretensa sobrevivência. “Quem se mete por atalhos, mete-se em trabalhos” mas o caminho para a melhoria não é um atalho, dá trabalho.

Escrito para o Link to Leaders a 12 de Junho de 2023, publicado a 19 de Junho de 2023.


  1. Para uma introdução aos seus trabalho e pensamento, fica a referência para a entrevista conduzida pela equipa da House of Beautiful Business ↩︎

João Sevilhano

Partner, Strategy & Innovation @ Way Beyond.

https://joaosevilhano.medium.com/
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