Atentemos ao que se presta atenção e aprendamos a distrair-nos melhor

Recorrendo à literalidade, o que fazemos com a nossa atenção não é exactamente igual. Depende da língua que estivermos a usar e em que parte do mundo nos encontrarmos. Por exemplo, em inglês “paga-se” a atenção, indicando que será algo valioso, digno de ser transaccionado; em francês “faz-se” atenção, implicando um esforço, uma dedicação; em português, em espanhol e em italiano, “presta-se” atenção, sendo algo que se oferece, se empresta ou se dispensa; em finlandês, atenção é algo que se junta, se acrescenta, como um condimento que dá sabor às relações.

Certamente que uma pesquisa mais exaustiva nos proporcionaria outras perspectivas provenientes de outros idiomas e culturas. Apesar disso, todas as que encontrei atribuem valor à atenção. Não pretendo, todavia, propor uma reflexão sobre as diferenças culturais em torno da atenção, por acreditar que as dificuldades que nós, pessoas, estamos a sentir para estarmos atentas passaram de agudas a crónicas e, quem sabe?, a universais. Será assim? Será que estamos atentos ao que realmente importa, no que diz respeito à atenção?

Parece ser consensual, pelo menos no senso comum, que estamos menos capazes de estar atentos. Os sinais parecem óbvios. Lêem-se cada vez menos livros; recomenda-se que os artigos e outros tipos de publicações tenham limites de caracteres, para não incomodar, a ponto de afastar, as mentes cada vez mais inquietas; por razões semelhantes, os vídeos não podem ter mais de X minutos, para não contribuirem para o enfado ou para o tédio; até os filmes já são difíceis de ver até ao fim…

Há ainda os famigerados1 e ubíquos aparelhos tecnológicos, com os seus ecrãs encantatórios, que nos distraem, que nos roubam a atenção2 - assumindo que a distracção é o oposto da atenção e da concentração - com as infindáveis notificações, vindas de pessoas, máquinas e marcas, e com a sua extraordinária capacidade para desempenhar muitas tarefas ao mesmo tempo que, por desígnio, raramente nos dão tréguas e nos deixam espaço para respirar no nosso próprio mundo.

A responsabilidade é atribuída, de forma óbvia e intencionalmente(?) difusa, aos tempos hodiernos. O mundo, hoje, distrai-nos constantemente e está a estragar as nossas mentes. Até inventámos uma condição - a Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção (PHDA, ou ADHD em inglês) - que tantos usam abusivamente, e alguns até se vangloriam, como cartão que as identifica como vítimas deste mundo, ou da sua própria natureza. Contudo, há evidências de que nós somos criaturas distraídas por natureza, que não foi a tecnologia nem a internet que nos “avariaram”3, e que tal característica é uma vantagem evolutiva4. Será que sempre fomos assim?

Sabe-se que a nossa atenção desde há muito que é vista como um problema a resolver, ou, para quem gosta de uma linguagem mais “positiva”, um desafio a conquistar5. O mundo em que vivemos actualmente será apenas mais uma etapa na nossa luta contra a distracção e a favor da atenção e da concentração. Por exemplo, a Síndrome da Fadiga de Informação é real e tem consequências comprovadas, como aludi num escrito passado6. Além da nossa tendência natural para obviarmos o “tempo longo” e para recorrermos à recência, o contacto prolongado com este dilema ter-nos-á deixado com preconceitos e vieses importantes. Nomeadamente, a distracção é “má” e a “atenção” é boa.

Preocupa-me a mercantilização da atenção, no sentido da sua ligação à produtividade. Partindo desta perspectiva, estar distraído é produzir menos, reforçando a maldade da distracção. A atenção não deve servir apenas a produção. Preocupa-me a diminuição das nossas capacidades analítica e crítica, e, mais ainda, a nossa capacidade metacognitiva, que é a capacidade de pensar sobre como pensamos.

Consequentemente, preocupa-me a externalização de conflitos que poderiam ou deveriam ser resolvidos internamente; a diminuição da nossa tolerância à frustração ou da não satisfação imediata dos desejos. Recordo-me de um episódio em que observava os meus filhos, que viam desenhos animados, e reparo que se gerou uma discussão entre eles: um precisava de ir à casa de banho e queria que os outros pausassem o que estavam a ver e só voltassem a deixar correr os “bonecos” quando regressasse. Ao reflectir sobre esta observação, comparei-a com a minha experiência em idade semelhante. Se estivesse a ver televisão e precisasse de satisfazer uma qualquer necessidade fisiológica teria duas opções: aguentaria ou iria onde tinha de ir, procurando perder o menos possível. Era uma decisão que tinha de tomar, comigo mesmo. Agora, pela facilidade em controlar o que vemos na televisão, como exemplo, um conflito interno passou para fora.

Não procurando causalidade nem absolutismo na explicação, parece-me que este tipo de fenómeno é visível no discurso público, com os graus de indignação e de sensibilidade a subirem, contribuindo para a polarização, para a ditadura do politicamente correcto e para o definhamento da nossa capacidade de conversar, de forma construtiva e colaborativa. A atenção está voltada para o insulto, para o melindre, para o politicamente correcto e incorrecto, para a indignação, para a reivindicação. Deixa-se de saber conversar e discutir ideias: o imperativo de uma forma correctamente determinada leva à censura do conteúdo.

O que penso que falta, portanto, é uma nova forma de encararmos a atenção e a distracção. William James, um dos pioneiros da psicologia, deixou-nos a ideia da importância em estarmos atentos ao que prestamos atenção7. A qualidade desta “meta-atenção” [sugestão minha] é, segundo a perspectiva de James, o que distingue os génios das pessoas normais. Não é uma mera via para a produtividade mas é um caminho para uma vida mais rica, plena, consciente, como muitos pensadores foram avançando ao longo da história.

“O amor é a qualidade da atenção que prestamos às coisas”, disse o poeta J.D. McCatchy; “a minha experiência é o que eu concordo em me dedicar”, escreveu William James; no seu livro “Modos de ver”, John Berger provoca-nos para estarmos atentos à forma como vemos as coisas e como isso influencia o nosso mundo e o dos outros à nossa volta; Mary Oliver, em “Our world”, lembra-nos que “atenção sem sentimento… é apenas um relatório”. Poderia continuar, com referências a leituras várias que fiz ao longo do tempo, com associações entre a atenção e o lazer, o ócio, o tédio, o “fazer nada”8. Prefiro terminar com outra ideia.

Saibamos distrair-nos melhor. A distracção é “má”, repito. Será? Quem lida ou já lidou com crianças saberá que a distracção pode ser algo muito poderoso. Uma birra na rua pode acabar por se chamarmos a atenção para um avião que passa, ou ao transformarmos a nossa mão num objecto voador. Portanto, distrair crianças das suas emoções e pensamentos, mudando a sua atenção para qualquer outra coisa, mesmo que insignificante e irrelevante, poderá ter efeitos positivos. Levamos esta noção, mais ou menos consciente, para a nossa versão adulta: aprendemos a lidar com emoções e pensamentos difíceis ao distrairmo-nos. Quando nos sentimos sós, entediados, zangados, frustados, preocupados, distraímo-nos com o ecrã reluzente que está mais acessível, que nos mostra coisas muitas vezes irrelevantes, tal como é um avião a passar ou uma mão que finge ser outro a voar. Distraímo-nos com distrações.

Distraiamo-nos melhor. Distraiamo-nos com as coisas e pessoas que nos importam, que nos permitam ter melhores relações com os outros e com o mundo, que nos permitam não ignorar os pensamentos e sentimentos que parecem duros ou perigosos, que nos ponham em contacto com o que nos move e com o que nos faz parar, quando parar é bom.

Adicionemos intenção às nossas atenção e distracção.

João Sevilhano

Partner, Strategy & Innovation @ Way Beyond.

https://joaosevilhano.medium.com/
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