Sobre o valor da conversa
Quanto vale uma conversa? Não me parece ser uma pergunta que permita uma resposta simples. Para quem insista em simplificar encontrar-se-ão, certa e facilmente, platitudes suficientes para servir de resposta satisfatória. As expressões “as boas conversas não têm preço” ou “as conversas têm valor incalculável” podem bem enquadrar-se no conceito de profundidadezinha do filósofo Daniel Dennett, a que costumo aludir. Relembrando a definição: é uma declaração que contém uma verdade factual e trivial, que aparenta ser profunda, e cujo verdadeiro significado é ausente ou difuso. Procuremos, então, aprofundar.
A especulação que indica que uma boa conversa pode ser tão valiosa e tão rica que não existe um número que quantifique o seu valor é de fácil aceitação. Apesar disso, não nos satisfaçamos com tal hipótese e procuremos o que quer tal coisa realmente dizer. A percepção da impossibilidade de quantificar o valor de uma conversa pode dever-se ao carácter intangível da conversação. As conversas são reais mas impalpáveis, como tantos outros fenómenos da experiência humana. Um fenomenólogo humanista diria que são sobretudo esses fenómenos que constituem a experiência dos humanos. Um materialista discordaria, obviamente.
Há conversas que mudam a vida de pessoas, tanto para melhor como para pior. Há conversas que permitem descobrir “filões de dinheiro” para ser açambarcado. Há conversas que trazem ruína, financeira e de outras ordens, a quem nelas participa. Repare que misturei diferentes dimensões que podem indicar os caminhos para quantificarmos o valor de conversas. Em algumas usei critérios que são puramente subjectivos e intangíveis, como “mudar a vida, tanto para melhor como para pior”. Noutras apontei para “filões de dinheiro” e “ruína financeira”, que poderão mais facilmente ser medidos e quantificados.
Valor vs. Custo
Importa distinguir “valor” de “custo”, a bem da clareza das ideias. Não tendo formação nem experiência suficiente nas áreas relacionadas com Economia, reconheço o risco provável de incorrecções. Contudo, munido de dicionários, do excelente Ciberdúvidas da Língua Portuguesa e de uma utilização fugaz e cuidada de um grande modelo de linguagem, arrisco-me com a seguinte distinção. “Custo” representa a quantia que se paga para adquirir um bem ou serviço. É objectivo e mensurável e por isso pode ser facilmente calculado. “Valor” tem que ver com a percepção de utilidade e relevância, com os benefícios percebidos de algo. Por estas razões, o cálculo do valor é mais complexo.
Ao trocar “valor” por “custo” na pergunta com que iniciei este escrito, a resposta será previsivelmente mais fácil de encontrar. Apesar disso, a utilização dos dois termos de forma indiscriminada na linguagem do dia-a-dia nem sempre ajuda. Pelo contrário, até pode atrapalhar a correcta distinção e consequente utilização dos conceitos. Por exemplo, dizer que “um advogado valoriza o seu tempo em 50€ por hora”, na realidade, revela-nos o custo do seu tempo e não necessariamente o valor que dele podemos extrair. Outro exemplo: nas relações profissionais de ajuda que funcionam por intermédio de conversação, os profissionais tipicamente definem um preço para o serviço que prestam de forma inteligível.
Para uma psicóloga ou psicoterapeuta que cobre 60€ por uma sessão de 50 minutos, fica claro o custo de cada conversa e até se pode, a partir daí, calcular o preço de cada minuto ou segundo. Porém, se o trabalho realizado neste âmbito for bem sucedido e contribuir para melhorar a vida da pessoa que adquiriu o serviço, como se calcula o valor desse serviço? E de uma dessas conversas? Pensando num acompanhamento psicoterapêutico semanal, consideremos, para efeitos do exemplo, perto de 40 sessões por ano, descontando faltas e férias. Todas as conversas têm o mesmo custo mas terão todas o mesmo valor? Imagino que alguns leitores, e bem, argumentarão que o valor não virá de uma ou de algumas conversas mas do processo psicoterapêutico, que inclui um determinado número de conversas num período circunscrito de tempo. Este exemplo alude à dificuldade em encontrar o valor de uma conversa mas põe em evidência o valor da conversação.
Um último exemplo: um conselheiro de investimentos financeiros cobra “X” pelos seus serviços. Numa conversa, possibilita que um dos seus clientes consiga concretizar um negócio de milhões. Essa conversa vale quanto? O preço do serviço ou o que permitiu que o cliente ganhasse? Ou as duas? Soma-se? Multiplica-se? Subtrai-se? Não sei fazer tais contas.
Valor e Custo
Partilho alguns exemplos que conjugam as noções de “custo” e de “valor”, procurando relevar a complexidade da associação entre as duas formas de quantificar e qualificar uma conversa.
Quanto custa e quanto vale uma reunião
Em 2023 foi notícia uma medida que uma empresa de comércio on-line, a Shopify, implementou. Criaram uma “calculadora do custo de reuniões”, que apresentava o custo estimado de uma reunião com base na compensação média, número de participantes e na sua duração. A medida fora criada como remédio para combater uma famigerada “doença” que tomou proporções pandémicas no mundo do trabalho: a “reunionite”. A intenção era encorajar os colaboradores da empresa a repensar a necessidade de marcar ou de participar em reuniões, tornando evidentes as implicações financeiras das reuniões ineficientes ou desnecessárias. Claro que tudo isto serviria para poupar dinheiro, ou cortar custos. Por um lado, podemos argumentar que este corte de custo serviria para tornar evidente o valor destas conversas. Por outro, podemos também imaginar que cortando o custo desta forma estar-se-á a limitar o valor potencial de tais reuniões. Talvez a melhor via fosse a combinação das duas interpretações: cortamos custos desnecessários e aumentamos o valor potencial das conversas na organização. Desconheço qual o efeito desta medida e parece-me que a minha curiosidade não será satisfeita com facilidade, dada a natureza incerta do desfecho de medidas do género da descrita.
Gastar dinheiro para evitar conversas
Alguns anos antes da notícia sobre a calculadora de custo de reuniões, fomos abordados por uma empresa que, por razões óbvias, não nomearei. Queriam contratar 7 programas de desenvolvimento individual. Um para cada dos seus 7 sócios-directores. Queriam promover o desenvolvimento destas pessoas, possibilitando uma evolução mais rápida no seu papel de líderes das respectivas equipas e pessoas. Um pedido relativamente banal, embora interessante. Porém, nas conversas preliminares para entendermos melhor a motivação do pedido e a intenção da colaboração, depois de alguns níveis de superficialidade ultrapassados, percebemos que existia um problema com um dos 7 directores. Era uma pessoa muito competente e experiente na sua área mas com muitas dificuldades de relacionamento com as pessoas sob a sua responsabilidade. A taxa de rotatividade era altíssima e a dificuldade em contratar para a sua equipa era significativa, pois a sua má fama já circulava no meio e no mercado. Quando questionámos os nossos interlocutores, para saber se já tinham abordado a pessoa em questão sobre o assunto, a resposta foi: “nem pensar!” Era, portanto, um assunto tabu entre as pessoas daquela organização. Perante este cenário, adoptámos uma postura mais provocadora, usando números. O nosso argumento: se cada programa individual custar, hipoteticamente, 2000€, estariam a considerar um investimento (custo) de 14000€, quando o verdadeiro objectivo da colaboração, o problema que queriam resolver, era a mudança do comportamento de uma das pessoas. Assumindo que o programa individual de desenvolvimento era adequado para o efeito, e que teria os resultados desejados, ainda assim estar-se-ia a considerar um investimento de 12000€ para evitar uma conversa que julgavam não poder ou que não queriam ter. Não aceitámos o projecto. Não por discordarmos do argumento que nos foi oferecido de as restantes 6 pessoas também poderem usufruir dessa experiência de aprendizagem. A razão da recusa deveu-se a não nos deixarem ser transparentes ao problema identificado: não podíamos referir à pessoa em questão nem a nenhum dos colegas o verdadeiro motivo do projecto. Recusámos o projecto não por não precisarmos do dinheiro mas por estarmos muito conscientes do valor da conversação, por não haver coincidência na interpretação ética da situação.
Num exemplo similar, há pouco tempo, numa conversa em que partilhava a minha intenção de escrever este texto, uma amiga ofereceu-me um exemplo semelhante. Uma clínica da área da saúde que detectara um problema com uma das suas pessoas técnicas. Ausentava-se regularmente do local de trabalho, alegando questões familiares e da sua própria saúde que tinha de resolver. Alguns colegas, fortuitamente, encontravam-na em actividades de lazer e a direcção reparou nalgumas “conversas de corredor” sobre o tema. Prontamente instalaram uma tecnologia de gestão de presenças através de leituras biométricas. Nunca conversaram com a pessoa em questão.
Em qualquer dos casos, seria possível calcular o custo estimado das conversas que se procuraram evitar. Nestes exemplos as conversas que nunca aconteceram valiam vários milhares de euros. Há outros casos que não detalharei mas deixo uma nota em relação a um fenómeno relativamente comum nas organizações, relacionado com a avaliação de desempenho. Há situações onde as pessoas de uma equipa ou de um departamento tendem a ser avaliadas todas como tendo “elevado desempenho” ou todas com desempenho sofrível. Este tipo de normalização escusa os avaliadores de ter conversas difíceis, incómodas, ou sequer de ter de pensar muito nas pessoas e no seu desempenho. Quanto dinheiro custarão essas conversas às organizações? Que outros efeitos terão na cultura organizacional e nos negócio e resultados?
A decadência das competências conversacionais e o valor comercial das conversas
Outro dos aspectos que me parece contribuir para a dificuldade em encontrar valor na conversação deve-se ao crescente cariz transacional das conversas que temos de ter. Parece ser cada vez mais difícil encontrar contextos onde seja possível conversar pelo bem da conversa e pessoas com tal disposição. “Tempo é dinheiro” e conversas que não levam a resultado algum custam tempo, e dinheiro. Sem previsibilidade em relação ao retorno desse investimento, o incentivo para muitas pessoas é inexistente. Mesmo que a intenção seja nobre, a pressão que é exercida e sentida por grande parte de nós revela a difícil decisão entre nos demorarmos numa conversa de valor incerto ou a certeza do custo do tempo. Que legitimidade teremos para criticar quem opta pela certeza da necessidade em vez do potencial valor ou apenas do prazer que se pode obter de uma conversa?
A transaccionalidade de grande parte das conversas deve-se também ao ambiente competitivo em que vivemos. O físico David Bohm alertava para os perigos de conversarmos apenas para competir e não para colaborar. No livro On Dialoguemostra as diferenças entre “discussão” e “diálogo” e especula sobre as desvantagens de apenas discutirmos e de cada vez mais estarmos menos capazes de dialogar. Na minha experiência, muitos de nós discutimos quando julgamos estar a dialogar, tal é a incorporação do “espírito” competitivo nas nossas vidas, que afecta negativamente a capacidade e qualidade da escuta, a compreensão, a capacidade empática, o pensamento crítico, o respeito pela diversidade, o altruísmo. Como somos em número suficiente neste registo, as alterações não serão apenas individuais mas sociais ou até civilizacionais.
É-nos exigida a capacidade de vender coisas, produtos, ideias, influência, estatuto. Sob pena de, se não adoptarmos essa postura, sermos considerados “passivos”, preguiçosos, lentos, pouco ambiciosos ou não suficientemente aguerridos. Quem faz diferente está fora de tempo, de contexto e da possibilidade de um determinado tipo de sucesso (mais material, leia-se).
Tenho a intuição de que o real valor da conversação não é o seu valor comercial. Interessa-me pouco o exercício de cálculo do valor exacto de uma conversa. Certamente encontrarão quem esteja interessado em tal exercício, e até quem já o fez. Talvez este tenha sido um exercício onde procurei, antes de todos, a mim mesmo, justificar a ideia que preconiza que as boas conversas têm valor inestimável, sem ficar com a sensação de estar a dizer ou a escutar uma “profundidadezinha”.
Escrito para o Link to Leaders a 23 de Abril de 2024, publicado a 1 de Maio de 2024.