Ghosting comercial: uma reflexão sobre o estado a que chegámos

O fenómeno a que me referirei nas palavras seguintes não é novo. Aliás, lembro-me de, numa fase muito precoce da minha experiência profissional, me aperceber da sua existência e de ter acesas conversas em equipa, há praticamente 20 anos. Apesar da sua antiguidade, continua a ser um mal actual e aparenta estar em crescimento, sobretudo desde a pandemia. Refiro-me ao ghosting, mas em contexto profissional.

Não morro de amores pela utilização de palavras estrangeiras, sobretudo quando existem alternativas no nosso bonito e versátil idioma. Contudo, este parece ser um dos casos em que não temos palavra em Português para uma tradução literal. O excelente website “Ciberdúvidas da Língua Portuguesa” alude a um dos meus exercícios favoritos quando exploro um conceito: entender a origem etimológica da palavra. Não raras vezes, tal exercício educa com riqueza a compreensão do fenómeno que se observa e investiga. Exploremos.

‘Para compreender, remontemos às raízes antigas da palavra ghost. Originária do inglês antigo gast, abarca significados que vão desde «respiração» até «espírito bom ou mau, anjo, demónio; pessoa, homem, ser humano». Na conotação bíblica, o seu significado prende-se com «alma, espírito, vida». Esta palavra foi herdada da sua forma protogermânica ocidental gaistaz, supondo-se que proceda de uma raiz indo-europeia, gheis-, usada na construção vocabular vinculada às noções de excitação, espanto ou medo. Já a ideia de um espírito ou alma associada à palavra ghost – a transição da palavra ao longo das diferentes fases do inglês levou a esta atual grafia – perpetua-se através das línguas germânicas ao longo da história (Online Etymology Dictionary). Ademais, ghost pode também figurar num verbo composto, to ghost-write («escrever como fantasma»), de 1922, formado a partir de ghost-writing («escrita-fantasma»), de 1919 (Ibidem). Falamos, portanto, de alguém que é contratado para escrever um livro, por exemplo, em nome de outra pessoa, que assina o documento.’1

Embora seja mais frequente usar-se o termo no domínio pessoal 2, ghosting tem sido também descrito em contexto profissional. Neste domínio o fenómeno tem sido descrito, sobretudo, em situações de recrutamento, tanto por parte de recrutadores como de candidatos. Não será sobre esse tipo de experiência que discorrerei.

Para quem ainda não se cruzou com esta palavra estrangeira, o seu significado poderá parecer familiar por experiência própria ou próxima: é a ausência súbita, inesperada e absoluta de notícias de alguém com quem se tinha uma relação; é um desaparecimento sem explicação nem justificação; é um silêncio que passa de dúvida a ofensa, que transforma saudável antecipação em intencional ou negligente agressão; é um abandono cujo efeito se sente em crescendo.

Confesso que adiei a escrita deste artigo. Da primeira vez, há muito tempo, adiei por anos. A razão foi, acima de tudo, falta de confiança. Nesta segunda vez, o adiamento durou apenas semanas. A razão foi prudência. Explico: tive uma experiência recente de “ghosting profissional”, que me zangou, indignou e irritou. Não quis que este texto fosse um discurso retórico, exaltado e irritado, cheio de indignação e queixume sobre o estado das coisas. Por outro lado, esperando que o tempo decorrido entre a última “ocorrência” e o momento em que escrevo, aludindo ao Salgueiro Maia, gosto de pensar que estarei a oferecer um singelo contributo para a revolução que se exige. “O estado a que chegámos” não apenas me irrita como me preocupa.

Com o passar dos anos, aprendi a normalizar este tipo de situações. Porém, chumbei e continuo a reprovar nesse teste de normalização. Nunca consegui sentir como “normal” a ausência de resposta a tentativas de contacto, depois de uma relação estabelecida, por mais insignificante que tenha sido. Não me refiro ao tipo de de contactos não solicitados com intenção comercial, a que se costuma chamar de cold call (aqui outra expressão que, por certa ignorância minha, não conheço em Português). Refiro-me a situações onde houve um pedido, muitas vezes seguido de uma ou mais reuniões, e até mesmo de uma proposta de colaboração.

Há casos até em que a relação profissional transbordou e se tornou, no mínimo, pseudo-pessoal. Em qualquer dos percursos que resulta em ghosting profissional, de maneira aparentemente simples para quem recebe tais comportamentos fantasmagóricos, como descrito, toda e qualquer comunicação é cessada. Nesses momentos, quando a prepotência não é tendência do receptor, surge a dúvida: “Será que aconteceu alguma coisa? Terão os e-mails sido filtrados e deixados a apodrecer no ´lixo´?” Passado pouco tempo, a dúvida instala-se e começa a espalhar-se, qual raíz em busca de água: “Será que fiz algo errado, sem me ter apercebido?” Mudam-se os canais, trocam-se os métodos assíncronos pelos síncronos, e é quando estes falham que a dúvida se torna em assombro ou em indignação. Quando se rejeitam chamadas telefónicas, quando se evita alguém que partilha o mesmo espaço físico ou, pior, somos cumprimentados sem qualquer alusão aos contactos havidos, não restam dúvidas: estaremos a ser vítimas do tal fenómeno.

Não será necessária grande investigação nos inúmeros artigos disponíveis sobre o tema 3 para listar um número considerável de hipóteses sobre as razões que levam algumas pessoas a tornaram-se fantasmas. O mesmo se aplica às consequências negativas que surgem em quem é “assombrado” por estes comportamentos e aos potenciais danos reputacionais em quem se torna “fantasma”. Não pretendo analisar cada uma dessas razões ou consequências. Quero antes dedicar-me a uma reflexão sobre o fenómeno que me levou a extrapolar para outros contextos da vida actual: a relação entre sobrecarga e respeito.

A tese: quando as minhas ideias me levam a uma postura mais compreensiva, concluo que andamos todos sobrecarregados. Nem é necessário recorrer a estudos, investigações e dados. A experiência empírica, tanto a própria como a observação da alteridade, mostram-nos que vivemos num estado de abundância. Infelizmente, não é a do tipo que os gurus da auto-ajuda advogam. Temos demasiadas “frentes” abertas ao mesmo tempo. Andamos preocupados com acontecimentos, próximos e distantes, que são demasiado importantes para poderem ser relativizados. Além disto, há suspeitas de que a pandemia nos deixou com um tipo de cansaço - físico, emocional, psicológico, espiritual - permanente, de longa duração, que ainda não compreendemos bem. Acresce a estas demandas a imparável onda de notificações provenientes de diferentes dispositivos com os quais nos relacionados de forma cada vez mais simbiótica. A abundância avilta a nossa capacidade de ajuizar e, em consequência, de decidir de forma mais acertada 4.

A antítese é mais simples: quando me irrito, me zango e me indigno, as ideias adjacentes a esses sentimentos levam-me a crer que comportamentos como os que caracterizam o ghosting são apenas falta de respeito, educação e consideração. Neste estado, não há razão que me sirva. A dificuldade em dizer “não”, a evitação de conflito, a sobrecarga, a apatia não servem como explicação. Neste estado, é fácil alimentar outro tipo de teorias da conspiração, mais ou menos verosímeis. Casos de “espionagem” ou de aproveitamento são sobejamente conhecidos, como a infeliz prática de pretensos clientes que procuram soluções junto de potenciais fornecedores para depois as implementarem com recursos internos ou recorrendo a parceiros habituais.

Uma possível síntese: o mundo em que vivemos e a forma como vivemos neste mundo leva-nos a banalizar o respeito e a consideração. As nossas vidas cada vez mais digitais tornam as relações mais facilmente descartáveis. O ambiente digital deixa-nos aparentemente ligados, mas estar ligados não é o mesmo que estabelecer relações. Não deixa de ser curioso que o equivalente a município onde está sediada a Meta - dona do Facebook, Instagram e WhatsApp - tenha decretado a solidão como uma emergência de saúde pública 5. Quando a qualidade das relações decresce, a nossa capacidade empática acompanha, tornando mais difícil compreender e imaginar sentir o que outros poderão sentir. Ou talvez seja a diminuição deste tipo de capacidades que leva ao decréscimo na qualidade das relações. Por outro lado, o ambiente digital torna-nos reféns do e-mail e de outras plataformas equivalentes. A expectativa de algo importante surgir a qualquer momento reforça a nossa dependência e simbiose com os aparelhos que nos permitem estar ligados a tudo e a a todos, sempre. Se juntarmos a tudo isto uma generosa pitada de individualismo, que parece estar a crescer, também impulsionado pelo contexto digital onde passamos cada vez mais tempo, forma-se uma tempestade social e humana perfeita.

Aparece-me como alarmante a possibilidade de deixarmos de conseguir distinguir a fronteira entre nós e os outros. Não no sentido fusional mas no seu oposto. A fronteira esvai-se porque não existe. Não existem os outros, as suas necessidades ou vontade, apenas as nossas. Ou, por oposição, só existem as dos outros e as nossas ficam anuladas indefinidamente. Qualquer dos cenários leva-nos a sentir perigo: perigo do isolamento ou perigo da anulação.

A expectativa e a incerteza corroem-nos lenta e consistentemente. É-nos mais fácil saber que o resultado é negativo do que não sabermos o resultado 6. Portanto, em conclusão, teses, antíteses e sínteses à parte, caras pessoas, por favor, respondam. Nem que seja para nos mandar à merda.

João Sevilhano

Partner, Strategy & Innovation @ Way Beyond.

https://joaosevilhano.medium.com/
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