Do politicamente correcto
Parte I: O contexto
A lerto-o/a, caro/a leitor/a, que, com a exploração que vou propor sobre os muitos efeitos negativos que tenho encontrado em quem segue, com exagero e extremismo, a doutrina do “politicamente correcto”, correrei o sério risco de enveredar pelo caminho contrário.
Apesar do alerta, repare, eu próprio comecei este artigo de uma forma que poderá ser considerada politicamente correcta. Nos dias que vivemos parece haver um desnorte do ponto de vista político, em mais do que um sentido. Pode-se colocar a hipótese que, por isso, se tornou mais difícil perceber o que é correcto. Muitas vezes, com o peso de um cuidado extremo, a roçar o medo, mesmo a expressão mais inocente e inócua de uma ideia, opinião ou sentimento pode ser vista como “sincericídio”. À cautela, para não magoar ninguém, eu incluído, decidi começar usando a forma que criticarei.
Há poucos anos tomei contacto com uma definição de “politicamente correcto” que se enraizou na minha memória, a ponto de a tornar minha. Na verdade, isto significa que me esqueci da fonte e que me tenho aproveitado para elaborar sobre o assunto. A definição é qualquer coisa como: “politicamente correto é uma teoria que sustenta a ideia de que é perfeitamente possível pegar num pedaço de merda pelo lado limpo”. Pois bem, não creio ser possível. Se é merda, é merda. Vai sujar, cheirar mal e contaminar. Por outro lado, se a virmos para lá das suas características mais proeminentes, podemos utilizá-la como fertilizante, por exemplo. Não como um fim trágico de algo mas como um catalisador de um início qualquer.
Aparentemente, não nascemos equipados com a associação da merda a porcaria. Não nos é natural, como a merda. Só com a experiência, com a cultura e com a educação vamos aprendendo a fazer essa ligação. Aposto que conhecerá histórias, em muitos casos o/a leitor/a será o/a protagonista, em que uma criança degusta ou manipula a merda, movidos por tudo menos pela repulsa. À luz dessas histórias, pode-se dizer que a curiosidade mata o politicamente correcto; mata a ideia de “merda”. Por oposição, serão a certeza, a convicção rígida, a inflexibilidade e a necessidade de controlo que nos levarão a optar por sermos mais políticos. Não me espantarei se alguns psicanalistas disserem que andamos mais “anais”.
Não podemos alterar a essência da merda. Podemos, sim, mudar a forma como a tratamos e o fim que lhe damos. Poder-se-ia dizer que quem opta pela via do politicamente correcto trata a merda com tanto carinho que prefere não mexer nela, para não a estragar, porventura. Claro que teremos de considerar a óbvia hipótese misófoba: os que fogem da sujidade a sete pés.
Esse parece ser um dos principais motivadores para o uso do politicamente correcto: a cautela. Não magoar, evitar a exposição, garantir que não há interpretações erradas nem ofensas subsequentes são razões que nos levam a dizer as coisas com um cuidado extremo. Aliás, a cautela está na génese da expressão “politicamente correcto”. Terá sido criada para designar linguagem ou acções que não firam ou ofendam grupos protegidos ou tipicamente desfavorecidos. Contudo, há quem defenda, como eu, que este cuidado está a ser levado para longe da correcção, em direcção à limitação da liberdade, em mais do que um sentido. Sendo o pior deles, a ausência de liberdade de pensamento.
De tal forma que pode ganhar contornos de prepotência. Assumirmos que sabemos o que vai ser melhor para o outro é, no mínimo, paternalista (também pode ser maternalista, para ser politicamente correcto). Por outro lado, andamos todos tão sensíveis que esse cuidado parece ter razão de existir. Basta observar as velocidade, ferocidade e voracidade dos ataques a qualquer comentário que não se alinhe com as ideias preexistentes e convencionais, “pretas-ou-brancas”. Se não sabe do que estou a escrever, espreite as redes sociais ou as caixas de comentários dos jornais online.
Correndo o risco de me contradizer, exemplos como estes podem levar-nos a pensar que a noção de que o politicamente correcto está a ir longe de mais é errada. E facilmente encontramos argumentos que sustentam esta outra perspectiva. Olhemos para os casos recentes de presidentes de nações, alguns deles eleitos recentemente, e de outros líderes políticos que têm ganho peso e tracção, e será fácil de verificar que essas figuras representam, em muitos aspectos, o oposto do politicamente correcto. A ideia de contradição é cara à noção de politicamente correcto. Se, por um lado, foi criada para afastar os preconceitos, hoje em dia é utilizada para os manter e solidificar.
Que fique claro, caro/a leitor/a, o ponto desta reflexão não é expor a minha posição política, nem analisar de que forma a correcção política está a ser usada pela esquerda e pela direita, ou se é a favor ou contra do liberalismo. É certo que o tema está na ordem do dia por tanto se falar de (des)igualdade entre géneros, de diversidade e do combate aos preconceitos. O meu interesse é mais comezinho. Interesso-me sobretudo pelos efeitos do politicamente correcto nas relações interpessoais, pelo seu impacto no seio de equipas de trabalho e nas empresas, pela forma como influencia as relações de amizade, familiares e conjugais. Será exactamente esse ponto a explorar na segunda parte deste artigo.
Parte II: A “doença” do politicamente correcto nas equipas de trabalho
D a minha experiência no mundo das organizações, o politicamente correcto continua a fazer das suas. E, sim, no contexto das relações interpessoais, em grande parte das empresas portuguesas, acredito que continua a produzir resultados bastante negativos. Voltemos à merda.
Imagine que numa equipa de trabalho existe um tema relacionado com relações entre os seus membros. Alguém que não suporta alguém, por exemplo. Apesar de ser sabido por todos, este tema não foi conversado por nenhum, alguma vez. Ao colocarmos esta equipa numa imagem, podemos desenhar um círculo onde todos os elementos estão sentados em cadeiras, voltados para o centro. No meio do círculo está uma valente bosta. Como todas as da sua espécie, cheira mal. Todos sentem o seu cheiro, muitos se incomodam e até pode haver quem goste (gostos não se discutem). Lá está. Todos a vêem e todos a cheiram. Nenhum faz alguma coisa em relação à situação. Ninguém age para aliviar o incómodo e o desconforto. Pelo contrário, a inacção mantém a bosta no seu sítio, produzindo o seu efeito. Assim se parece o politicamente correcto no seio de uma equipa.
Há equipas e pessoas que, não suportando mais aquela visão e aquele cheiro, adoptam a estratégia de colocar um saco a envolver “o problema”. Mas toda a gente sabe que se temos um saco com porcaria, a tendência é para o encher com mais porcaria. Poderia ser uma lei universal: porcaria atrai porcaria. Basta olhar para uma qualquer rua de Lisboa. Se alguém colocar um saco do lixo à porta, prontamente o saco se transforma numa mini lixeira. A estratégia do saco suporta-se na definição que avancei no primeiro artigo – “politicamente correto é uma teoria que sustenta a ideia de que é perfeitamente possível pegar num pedaço de merda pelo lado limpo” – que é o mesmo que dizer: é possível transformar merda noutra coisa qualquer, sem fazer algo,. Não é. Por outro lado, que eu saiba, ainda não se inventou um saco como o do Sport Billy. Todos os sacos que conheço têm capacidade limitada, enchem. Poupo-vos a imagem, ou talvez já vá tarde, do que acontece quando se perfura, por impaciência, por exaustão ou por qualquer outra razão, um saco cheio de merda.
Então, qual será a solução? Alguém tem de pegar na bosta. Alguém terá de se sujar, sabendo que se poderá limpar. Melhor ainda se se conseguir realizar essa operação em equipa. Assim a sujidade reparte-se. E o efeito positivo far-se-á sentir em todos. Na prática, a única forma que conheço para isto poder acontecer é: conversando. Não são conversas quaisquer. São conversas sobre a forma como se conversa. Este será o primeiro passo para eliminar o politicamente correcto e se começar a caminhar para o correcto.
É preciso pouco para que desinteligências, falta de alinhamento, diferenças nas formas de ser e de trabalhar, idiossincrasias, expectativas provoquem dificuldades nas relações interpessoais e, em consequência, no trabalho que uma equipa tem de operar. “Passaste por mim no refeitório e não te sentaste para almoçar comigo”; “desformatas sempre os documentos”; “refutas sempre as minhas ideias”; “não me deixas falar”; “a tua opinião é sempre tida em conta, a minha não”; “tens a secretária sempre num caos”; “é desagradável comigo”. São apenas alguns exemplos de pequenas coisas que se podem tornar em grandes problemas, quando não endereçados correctamente. Quando se opta pelo politicamente correcto. Pela manutenção do status quo, que tantas vezes é sinónimo de “paz podre”.
Tenho verificado, nos bons exemplos que vou conhecendo, que o melhor antídoto para o politicamente correcto, ao nível das relações entre pessoas, é a elegância. E tenho visto que na receita da elegância estão ingredientes como: a coragem, o respeito, a perspicácia e a candura. São qualidades que dificilmente aprenderemos sozinhos. Portanto, caro/a leitor/a, se quer curar-se da doença do politicamente correcto, sem incorrer no seu extremo oposto que é tornar-se num/a desbocado/a, sem filtro, comece por conversar sobre isso. Como em qualquer receita culinária, o cozinhado final não é uma mera soma dos seus componentes. E nenhum dos ingredientes vale por si só. Para se “cozinharem” boas equipas há que usar os melhores utensílios que temos à nossa disposição: conversas.
A Parte I foi publicada originalmente no Link to Leaders em 14 de Dezembro de 2018.
A Parte II foi publicada originalmente no Link to Leaders em 14 de Janeiro de 2019.