As conversas dos apaixonados e das equipas

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche, no seu livro “Humano, demasiado humano”, deixou-nos a ideia do casamento enquanto uma longa conversa.

Antes de casar devemos-nos colocar a seguinte pergunta: acredita que irá gostar de conversar com esta/e mulher/homem até à velhice? Tudo o resto num casamento é transitório, mas a maior parte do tempo que passarão juntos será dedicado à conversação.
— Friedrich Nietzsche

Recorde uma altura da sua vida em que tenha sentido uma profunda e intensa paixão por alguém que ainda não tinha tido tempo de conhecer bem. Se é este o estado em que se encontra poupe-se a sua memória e recorra à sua consciência, dentro do que é possível para uma pessoa apaixonada. Partindo daqui, fica uma proposta de análise breve das conversas tidas entre as pessoas apaixonadas e da forma como esta reflexão pode ser útil para as conversações que se geram no seio de uma equipa de trabalho.

Tipicamente, os apaixonados conversam sobre si e sobre os seus objectos de paixão. Nesse estado, até o que é considerado como falha ou como vulnerabilidade tende a vestir a capa dos seus opostos. No vaivém da conversação, os apaixonados deleitam-se a conhecer o outro enquanto se dão a conhecer, esperando o mesmo tipo de deleite como moeda de troca. Os melhores atributos, as virtudes, as falhas e as vulnerabilidades são todos etiquetados com a mesma cor, com a mesma intensidade e a com mesma urgência. Este primeiro tipo de conversas serve, na essência, para criar e consolidar a relação.

Se a relação se mantém, e mesmo na fase inicial, é habitual surgir outro tipo de conversas que se destina a explorar possibilidades: “Que bom seria fazermos a viagem X…”; “Que maravilhoso seria vivermos juntos…”; “Como seremos nós enquanto família?”. Só será possível conversar sobre hipóteses de futuro quando se conversou em medida suficiente para fortalecer a relação; quando se instala algum tipo de confiança/convicção/fé sobre o devir da relação.

Quando o desejo empurra as possibilidades para a realidade, a vida encarrega-se de trazer outro tipo de conversas: as que servem para coordenar acções. Quando uma relação chega a este ponto o potencial para o surgimento de ralações é inevitavelmente activado. Por exemplo, a um casal que passa a viver na mesma casa aparecem, como que por magia, actividades como: lavar a loiça e a roupa, limpar a casa, ir ao supermercado, coordenar férias, ir buscar os miúdos, etc. Nesta altura, entre outros factores, se os intervenientes não têm um registo de conversação suficientemente amplo, diverso e eficaz, podem-se criar desencontros, desentendimentos e conflitos. Tal pode suceder, em parte, porque a necessidade de coordenar acções produz alterações no tempo e na disponibilidade para as conversações dos outros dois tipos. Por outro lado, a eficácia na coordenação de acções dependerá do nível de conhecimento existente numa relação e das oportunidades que se criaram para a exploração de possibilidades.

Parecem haver claras interligação e interdependência entre os diferentes tipos de conversação e esta, por sua vez, é o palco onde tudo acontece: a relação cria-se e consolida-se através da conversação, o seu futuro é projectado (possibilidades) durante conversas e passível de ser concretizado (acção) mediante a mesma via.

Acredito que as mesmas dinâmica e hipótese se podem aplicar às equipas. A minha experiência recente, embora empírica, tem-me demonstrado isto mesmo. Quando pergunto que tipo de conversa é a mais comum numa equipa a resposta é, com poucas variações: 90% do tempo é passado na coordenação de acções. As equipas de trabalho existem para atingir objectivos, para obter resultados, e para isso é justo considerar que uma coordenação de acções impecável é imprescindível. Porém, para tal acontecer, 10% do tempo de conversação dedicado à construção de relação e à criação e exploração de possibilidades parece-me manifestamente insuficiente. Quantas equipas conhece que, em equipa, conversam sobre como se conversa? Não me refiro às conversas em pequenos subgrupos ou de um-para-um no corredor, no café ou durante um almoço; refiro-me, sim, ao tempo passado, a conversar, em equipa. Conheço poucas equipas que o fazem mas as que conheço são boas.

O que estas equipas fazem é bastante simples. Recentemente trabalhei com uma direcção que tinha três “equipas naturais”. Começámos por analisar os tipos de conversação que surgiam nas reuniões de trabalho destas equipas. Sem surpresas, todos concordámos que as suas conversações serviam sobretudo para coordenar acções. Ajudámo-los a diversificar os tipos de conversação, mesmo durante as tais reuniões, onde introduzimos práticas simples como o “check in” e o “check out”. Estas práticas permitem que cada pessoa conheças o que os outros pensam em sentem e compreendam as diferenças e as semelhanças em relação às diferentes expectativas. A única forma que conhecemos de transformar expectativas em compromissos é através da conversação.

Também introduzimos outro tipo de metodologia a que chamamos “A Cozinha”. A Cozinha é um tempo dedicado no final de cada reunião onde as conversas não podem ser sobre coordenação de acções: têm de ser sobre a forma como a equipa conversou, nessa reunião. Esse é um tempo para a meta-conversação. Na cozinha, os membros da equipa podem dizer o que sentiram; o que pensaram e não disseram; o que necessitam dos outros e o que podem oferecer à equipa; e o que vêem como necessário para que a equipa evolua e melhore. A presença de um facilitador externo pode ajudar, quando se introduz esta metodologia. Com prática, a maior parte das equipas podem tornar-se autónomas na condução destas “conversas de cozinha” e identificar um “facilitador de cozinha” num esquema rotativo. Tipicamente, apenas são necessários quinze a vinte minutos para este tipo de conversação. Ao transformar este prática num ritual, as equipas garantem que existe um espaço para conversações que melhoram as relações e que abrem novas possibilidades de relacionamento.

Nós usamos a metáfora da cozinha por duas razões. A primeira surge de uma observação do dia-a-dia. Quando organiza um jantar em casa ou em casa de um amigo, onde é que as conversações “quentes” e importantes acontecem? Na cozinha. A segunda razão tem que ver com limpeza e higiene. Imagine o que aconteceria se usasse a sua cozinha como habitual durante uma semana inteira sem a limpar ou lavar a loiça. imagine a visão e o cheiro depois de uma semana de cozinhados e refeições sem lavar nada. O que aconteceria se quisesse cozinhar alguma coisa, se conseguisse aguentar o cheiro? Mesmo que restasse alguma comida para cozinhar, provavelmente não teria as ferramentas e utensílios disponíveis. Para manter uma cozinha limpa e operacional, “tem de se lavar os pratos” - que é diferente de “partir a loiça”. O mesmo acontece com as equipas. Se deixarmos os “pratos sujos” durante duas, semanas, meses ou mesmo anos, o ambiente da equipa irá sofrer.

Depois de introduzir estas práticas, as três equipas e toda a direcção mudaram as suas dinâmicas de comunicação. Tornaram-se mais proficientes a comunicar para lá “do que tem de se fazer”. Nas suas palavras, ajudámo-los a adaptarem-se mais rápida e facilmente a transformação digital que está a acontecer. Num paradoxo aparente, ao se terem tornado mais humanos na forma como conversam conseguiram abraçar o desafio do “digital” mais facilmente.

Voltando à ideia de Nietzsche, consideremos a seguinte hipótese: os casais e as equipas mais bem sucedidos serão os que conseguem, de forma contínua e constante, conversar sobre a relação e a sua manutenção/evolução, que continuam a criar e a explorar possibilidades e que conseguem coordenar acções de forma eficaz. No fundo, são os casais e as equipas que, apesar da necessidade de coordenação, mantém a importância e relevância de diversificar os seus tipos de conversação. As medidas e proporções não estão escritas e deverão ser ajustadas à realidade, sempre transitória. A via que conhecemos para que tudo isto possa acontecer é, espante-se, a conversação. Será importante que se consiga criar um outro subtipo de conversação que estará ligado a todos os outros: conversações sobre a forma como se conversa.

Foi publicada uma versão mais curta deste artigo na edição de Outubro de 2017 da Revista Pessoal e no RH Online.


Este texto faz parte do Book of Beautiful Business, publicado em 2019.Foi igualmente republicado a 2 de Novembro de 2020, na Small Giants, uma publicação australiana.

Este texto faz parte do Book of Beautiful Business, publicado em 2019.

Foi igualmente republicado a 2 de Novembro de 2020, na Small Giants, uma publicação australiana.


Nota do autor

É uma honra ter um texto no Journal of Beautiful Business e no Book of Beautiful Business. Obrigado à equipa da House of Beautiful Business, em especial à Nina Kruschwitz e à Megan Hustad, pela oportunidade e ajuda na edição..

João Sevilhano

Partner, Strategy & Innovation @ Way Beyond.

https://joaosevilhano.medium.com/
Anterior
Anterior

Inteligência Artificial e Natural

Próximo
Próximo

Os efeitos positivos de pensar negativo