Do Paradoxo da Maturidade no Mundo Corporativo

Entre a Autenticidade Exigida e a Autonomia Negada

Existe uma contradição curiosa no mundo empresarial hodierno: quanto mais se fala de autonomia, menos autonomia parece existir. Quanto mais se proclama querer pessoas maduras e responsáveis, mais infantis se tornam as práticas de gestão e os rituais corporativos. Esta tensão manifesta-se de formas subtis e evidentes, criando um paradoxo que merece ser examinado com atenção.

Os calendários corporativos, que variam consoante a organização mas que, apesar das diferenças, manifestam padrões evidentes, são tipicamente pontuados por momentos de “celebração” e de “união” que mais parecem saídos de um manual de actividades para uma colónia de férias do que de um ambiente profissional. Não se trata de uma crítica à alegria ou à descontracção - elementos fundamentais para qualquer ambiente humano saudável. O que deve ser questionado é a forma como esta “alegria” é formatada, prescrita e, muitas vezes, imposta. Recordo de visitar um cliente em anos diferentes em que notei uma mudança no que as pessoas diziam sobre as famosas festas que organizavam. De um ano para o outro, por razões relacionadas com decréscimo de resultados e de condições, que não poderei detalhar para não revelar a identidade das pessoas e da empresa, o discurso passou de “temos as melhores festas da cidade”, dito com entusiasmo, para “já nem as festas servem para animar”, dito enquanto se notava um revirar de olhos colectivo, que parecia acrescentar: “agora são apenas ridículas”.

A infantilização manifesta-se em camadas sobrepostas, cada uma mais subtil e mais perniciosa que a anterior. Na superfície, expressa-se através de rituais e práticas que parecem transpor directamente o universo infantil para o mundo adulto: jogos, decorações temáticas, dramatizações forçadas, “actividades de equipa” que mais parecem exercícios de jardim de infância. Bem sei que pode ser “apenas” uma questão de gosto, e que há gostos para tudo. Ainda assim, quando mergulhamos mais fundo, encontramos uma estrutura psicológica onde a organização, tal como pais excessivamente protectores, julga saber sempre o que é melhor para os seus “filhos”, negando-lhes a capacidade de decisão sobre questões fundamentais das suas vidas profissionais. No nível mais profundo, esta dinâmica manifesta-se na própria concepção do que significa ser um profissional hoje - alguém que deve ser simultaneamente “autêntico” e completamente moldável às necessidades da organização. É uma contradição cuja responsabilidade de resolução recai sobre as pessoas e raras vezes sobre as organizações, corporizando-se num dos exemplos do uso perverso da ideia de autonomia.

Esta dinâmica cria um ambiente de ambivalência artificial (já nos basta a natural!) onde se exige maturidade profissional enquanto se infantiliza sistematicamente o contexto. “Sejam responsáveis”, dizem as organizações, “mas participem entusiasticamente neste jogo de mímica”. “Mostrem iniciativa”, proclamam, “mas sigam exactamente este guião predeterminado”. “Sejam autênticos”, insistem, “mas apenas dentro dos parâmetros que definimos como aceitáveis”.

É revelador observar como as empresas estão a substituir as tradicionais festas regadas a álcool por actividades como escape rooms, caças ao tesouro e jogos populares 1. Esta transformação espelha uma mudança mais profunda na nossa relação com o prazer e com o tempo - uma obsessão contemporânea com a produtividade que colonizou até os momentos de celebração. As antigas festas corporativas, com todo o seu potencial para excessos e comportamentos “inadequados”, funcionavam como uma espécie de ritual carnavalesco onde as hierarquias e normas podiam ser temporariamente suspensas. Era uma forma de catarse colectiva que, por mais problemática que pudesse ser, permitia um momento de verdadeira suspensão da ordem estabelecida, por mais efémero que fosse.

A actual substituição por actividades “seguras” e “construtivas” revela uma incapacidade fundamental de lidar com o prazer não-instrumentalizado. Mesmo os momentos de lazer devem agora servir um propósito, devem “desenvolver competências”, “fortalecer a equipa”, “melhorar a comunicação”. É a manifestação corporativa de um fenómeno social mais amplo: a crescente “gamificação” de todas as esferas da vida.

À primeira vista, esta mudança parece positiva - menos álcool significa menos riscos, maior sobriedade (em todos os sentidos). Contudo, quando uma empresa substitui um jantar de Natal por uma sessão de “Jenga gigante”, não está necessariamente a respeitar mais a maturidade dos seus colaboradores. Está apenas a actualizar o seu repertório de entretenimento controlado, numa evolução inquietante do que Foucault denominou ‘corpos dóceis’ - onde a docilidade já não é apenas física, mas penetra nas dimensões psicológica e emocional. É uma evolução particularmente insidiosa porque, enquanto a docilidade física era visível e por isso mesmo contestável, a docilidade psicológica e emocional infiltra-se subtilmente sob o disfarce do desenvolvimento pessoal e profissional. Os mecanismos de controlo tornaram-se mais subtis mas não menos eficazes: em vez de corpos disciplinados em linhas de montagem, temos mentes e emoções formatadas em actividades supostamente lúdicas e pedagógicas.

É interessante notar que estas novas actividades são apresentadas como mais “exigentes” e “sofisticadas”. “As pessoas exigem mais das suas empresas”, dizem os organizadores destes eventos. Mas exigem mesmo? Ou será que as empresas estão a confundir complexidade de entretenimento com profundidade de envolvimento? Esta confusão não é acidental. A sofisticação aparente das novas actividades serve como um véu que encobre a mesma dinâmica infantilizante de sempre. É como se as organizações tivessem apenas actualizado o seu repertório para uma audiência mais exigente, sem questionar a premissa fundamental de que as pessoas precisam ser entretidas e controladas. O entretenimento torna-se mais elaborado mas a sua função permanece a mesma: criar uma ilusão de autonomia enquanto se mantém o controlo.

Esta infantilização tem raízes profundas na nossa cultura organizacional. Reflecte, por um lado, uma incapacidade de lidar com a verdadeira autonomia - que implica aceitar que as pessoas possam discordar, questionar e até rejeitar certas práticas. Por outro lado, revela uma ansiedade fundamental sobre controlo e poder - é mais fácil gerir crianças (ou adultos tratados como tal) do que lidar com a complexidade de relações verdadeiramente adultas.

O caminho para superar esta dinâmica não passa por eliminar a alegria ou a celebração dos ambientes profissionais. Repito: não se trata de eliminar a alegria, a celebração, nem a diversão. Implica criar espaços onde a autonomia não seja apenas uma palavra bonita em apresentações corporativas, mas uma prática vivida e respeitada. Onde a celebração possa emergir de forma orgânica e autêntica, não como uma imposição mas como uma expressão genuína de satisfação e realização profissional.

Em última análise, o verdadeiro teste de maturidade organizacional não reside nas práticas que adoptam, mas na capacidade de criar ambientes onde os adultos possam ser verdadeiramente adultos - com toda a complexidade, responsabilidade e, sim, também alegria que isso implica. Enquanto continuarmos a confundir entretenimento com envolvimento, e controlo com cuidado, perpetuaremos um ciclo que diminui tanto as organizações quanto as pessoas que as compõem.

A questão fundamental não é se devemos ou não ter momentos de celebração e descontracção no trabalho. É como podemos criar esses momentos de forma que respeitem e valorizem a maturidade dos envolvidos, em vez de a negar sob o disfarce de uma falsa jovialidade. Quando conseguirmos responder a esta questão, não teremos apenas organizações mais maduras - teremos espaços onde o trabalho e a celebração podem coexistir naturalmente, sem artifícios nem controlo.

João Sevilhano

Partner, Strategy & Innovation @ Way Beyond.

https://joaosevilhano.medium.com/
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