Corolários do possível: conversar para (re)começar e transformar

"Tela Habitada" (1976) de Helena Almeida

"Corollaries", de Lubomyr Melnyk, não se escuta, habita-se. Foi, para mim, assim como estar em casa desde a primeira vez que o ouvi, naquela manhã de sábado. O álbum, de sons entrelaçados e onde cada nota é parte de um fluxo (quase) ininterrupto, é um convite a desafiar a linearidade e as noções convencionais de início e de fim. Um contraponto comovente aos dias que vivemos, chamando-me a atenção para a beleza da circularidade, a sabedoria da repetição, o carácter sagrado dos rituais, a escolha de simplesmente permanecer, atenta e maravilhada, ante o espanto, a fragilidade, o amor.

Três pontos de preâmbulo antes de continuar:

  1. aqui, desafiar a linearidade e as noções convencionais de início e de fim é um convite a reconsiderar como concebemos o nosso tempo e o tempo das organizações. O modelo industrial de progressão, sempre para frente, sempre para cima, sempre mais rápido, tem-nos deixado exaustos e desconectados (1): de nós próprios, ao sacrificarmos o nosso bem-estar desrespeitando os ritmos e sinais do corpo, as necessidades de descanso e regeneração; dos outros quando, em nome da falta de tempo e da produtividade, limitamos as nossas relações a interacções puramente transaccionais; do propósito do trabalho, quando apenas olhamos para o que é quantificável para medir o sucesso e esquecemos que, muito mais que os números, o “segredo” está no valor intrínseco, no significado, no que verdadeiramente nos orgulha. Onde é que estamos a escolher pousar a nossa atenção quando, permanentemente, “andamos debaixo de água”, “no lodo”, “a mil”? Será que estamos conscientes da fragmentação profunda que nos estamos a infligir e aos outros? O “bola para a frente” tem um preço elevado: a crescente alienação do trabalho, dos lugares de que fazemos parte, de nós próprios que, infelizmente, tem tudo para levar a melhor e não teremos mais onde “caber”. Por isso, nas nossas intervenções, convidamos as pessoas a experimentarem um tempo organizacional mais orgânico e longo, com oportunidades para integrar as aprendizagens antes de avançar. Como na estrutura de "Corollaries", o desenvolvimento das pessoas e das organizações não acontece em linhas contínuas. Idealmente, é iterativo e revisitado.

  2. acreditamos que a beleza da circularidade se manifesta quando uma organização se quer (re)visitar, (re)conhecer, encontrar uma nova consciência. Vemos isto quando equipas reflectem sobre os seus valores e propósitos. Onde a repetição é mais do que uma reprodução mecânica, quando assumida com intenção, de forma sustentada e sustentável.

  3. no que ao carácter sagrado dos rituais diz respeito, temos observado como as organizações beneficiam da curiosidade e da resiliência que colocam em encontrar significado e intenção nos momentos colectivos: dos mais simples, a escolha de iniciar a semana com um breve check in; aos elaborados e cerimoniosos, como poderão ser a decisão por um encontro mensal em que se constrói uma sabedoria colectiva que serve a todos e a cada um. O que torna estes momentos sagrados é a atenção plena que lhes dedicamos, a consciência de que estamos a criar não apenas resultados, mas significado. Um fio de prumo que se cria e de que se cuida para transformar grupos de pessoas em verdadeiras comunidades.

[Fim de preâmbulo]

Convidamos as pessoas a habitarem um espaço diferente, um lugar onde as conversações não são apenas trocas de palavras, mas territórios a explorar. Paisagens sonoras por descobrir em que cada interacção não é um evento isolado, mas algo que ressoa e se entrelaça com outras: anteriores e até futuras, possíveis conversações, formando uma composição maior que transcende a soma das partes. Assim queiramos que seja.

Somos da opinião de que as conversas têm (podem ter, melhor dizendo) um carácter arqueológico. Camadas sobre camadas de significados, alguns visíveis à superfície, outros enterrados profundamente, aguardando a paciência de quem sabe ou está disposto a aprender a escavar. Gostamos de dizer e, acima de tudo acreditamos, que a conversação é a “nova tecnologia” da transformação, por isso, propomo-nos escavar artefactos com os nossos clientes, que é como quem diz os significados não raras vezes subterrados pelo tempo e pelos hábitos. Às vezes encontramos fósseis, ideias que já não servem (ou parecem já não servir); outras vezes, tesouros de sabedoria colectiva que merecem ser redescobertos e honrados.

O tempo, sabemos, não é linear. E o tempo das organizações partilha, evidentemente, desta fluidez. As empresas, como as pessoas, respiram em ciclos, expandem-se e contraem-se, repetem padrões e, com alguma sorte, intuição e intenção, transcendem-nos. Como em "Corollaries", há um pulsar, um ritmo subjacente que não se prende a métricas, mas à descoberta de compassos próprios - individuais e colectivos.

Escutar repetidamente este álbum ao longo das últimas semanas leva-me para, entre outros, o lugar do medo: quantos projectos ficam adormecidos nas intenções, à espera do momento perfeito que nunca chega? "Em cada manhã digo ao meu coração: hoje recomeço", dizia Santo António Abade. Este é também um movimento que procuramos inspirar: o de recomeçar, não numa repetição estéril, mas numa espiral que permita níveis mais elevados de consciência, de compromisso e de reais possibilidades.

É por isto que a vulnerabilidade - as vontade e disponibilidade para mostrar a outros verdades sobre nós que podem, ou não, ser custosas - é também, para nós, material de trabalho, um lugar potencial de desenvolvimento. Com cada grupo de pessoas com quem trabalhamos, sabemos que sob os títulos, protocolos, métricas e resultados, estão pessoas com intenções, propósitos, expectativas, medos, dúvidas, tantas vezes claras e só a precisar que se use a espátula com maior precisão e cuidado.

Somos os primeiros a dizer que não temos uma definição última do que somos, e isso, ao mesmo tempo que nos inquieta, comporta uma liberdade que, para nós, é preciosa: a do desejo de nos reinventarmos e não colarmos a modos de ser e de fazer que, porventura, já não nos cabem. Temos um certo orgulho de que a nossa identidade permaneça em construção, aberta, disposta a incorporar novas influências, a explorar territórios desconhecidos. Porque queremos muito ter a capacidade de habitar perguntas sem a urgência de respostas definitivas.

Como em "Corollaries", para nós, cada momento contém simultaneamente um eco do passado, as mãos no presente e um olhar no futuro. Sabemos que as possibilidades não são infinitas, mas acreditamos que há futuros possíveis, tantos quantos os que conseguirmos e quisermos imaginar.

É por isso que continuamos espantados de existir (tomando a liberdade de interpretação livre do “É proibida a entrada a quem não andar espantado de existir” de José Gomes Ferreira), e de construir pontes que nos permitam escutar, descobrir e ajudar a construir novos caminhos em conjunto com os nossos clientes.

(1) O João também já escreveu sobre isto.

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