Continuando a procurar uma nova definição de “trabalho”

Recentemente, após uma nova leitura e com a distância de algumas semanas, consegui aperceber-me que um artigo que escrevi 1 neste mesmo portal me lançara as bases necessárias para continuar a reflectir sobre o mesmo tema, tendo por inspiração a seguinte pergunta-hipótese: que mudanças têm de acontecer, ou ser provocadas, para que o conceito de “trabalho” passe a estar mais ajustado à realidade actual e proporcione um índice mais alto de saúde e de satisfação para quem trabalha?

Uma das propostas que mais me tem entusiasmado, por um lado, e baralhado, por outro, é a que defende a ideia em que “o lazer é a base da cultura” 2. O entusiasmo deve-se ao interesse que me desperta e às pertinência, clarividência e actualidade que reconheço na ideia – apesar de ter sido compilado com base em palestras que o autor conduziu em 1947. A baralhação surge por saber que ainda não sou capaz de viver com essa base, que ainda não tenho os conceitos incorporados – apesar de os compreender racionalmente, julgo e espero eu – nem encontrei estratégias concretas e passíveis de serem aplicadas, antes de todos, por mim e, porventura, por outros.

Não pretendo enfadá-lo, caro leitor, com um resumo da interessantíssima e pertinente obra do filósofo alemão Josef Pieper; até porque, se não ficou suficientemente explícito, recomendo vivamente a leitura desta sua obra. Procurarei, antes, explorar alguns dos conceitos-base, contrastando-os com alguns fenómenos que tenho observado no mundo do trabalho, onde também sou habitante e contribuinte.

Hoje, e, pelos vistos, já nos anos 40 e 50 do século passado assim era visto ou, pelo menos, previsto: os momentos de lazer parecem apenas ter espaço e tempo para acontecer nas interrupções do trabalho. Trabalho e lazer, tal como água e azeite, não se misturam. Aparentemente pelas mesmas razões: são compostos por substâncias “incompatíveis”. Parece estranho que assim seja, dada a importância do lazer na cultura ocidental, que pode ser atestada pela história da palavra: um dos significados próximos em Grego é skhole, e em Latim schola, que deram origem à palavra “escola”. Portanto, historicamente, lazer está muito próximo do espaço dedicado à educação e à aprendizagem, que hoje parecem servir, quase exclusivamente, como preparação para o mundo do trabalho: a escola como “fábrica de trabalhadores”.

Deve ser por isto que, quando estudava, ouvia os mais velhos a aconselharem-me: “aproveita este tempo, porque quando começares a trabalhar a ‘boa vida’ vai acabar”. Esta perspectiva sempre me intrigou. Como é que aos 23 anos a “boa vida” ia acabar, ainda por cima quando não considerava aquela vida assim tão boa. E o que fazer com os cerca de 50 anos, em média, que ainda me restavam? Estaria destinado a viver uma vida má? Parece-me agora que esses conselhos se deviam ao paradigma que o referido filósofo alemão chamou de “trabalho total”: um mundo onde tudo, ou quase, gira em torno do trabalho e onde as pessoas se definem e definem a sua existência por e para o trabalho.

Não estaremos assim tão longe desse mundo. Basta ver o sentimento de necessidade de “planeamento eficaz” para marcar, tirar e até aproveitar as férias; ou, por exemplo, uma obsessão quase constante por fazer algo de útil ou produtivo com o tempo livre.

Talvez a solução não esteja em transformar os locais de trabalho em sítios onde, aparentemente, há tempo e espaço para o lazer. Não serão as mesas de ping-pong, nem os matraquilhos, nem os puffs, nem as happy hours, nem as citações inspiradoras espalhadas pelas paredes que farão com que as pessoas passem a incorporar o lazer enquanto trabalham. Ao procurar inspirar as pessoas para que estas aspirem a encontrar sentido no trabalho3, as empresas, que, por acaso, também são feitas de pessoas, têm produzido muita treta 4.

Talvez a solução esteja em encarar o lazer de outra forma – não sendo resultante de factores externos, não sendo a consequência de encontrar tempo livre, um feriado ou férias. Como nos diz Pieper, o lazer é uma atitude mental e espiritual que, ao contrário da busca incessante de actividade e de produtividade do “trabalhador” moderno, busca uma não-actividade – que não é o mesmo que inactividade -, um silêncio e uma calma interiores que são o contrário da ocupação e da preocupação. É um estado em que deixamos as coisas acontecerem, capazes de estar atentos à realidade, de a apreender, de a contemplar e de, depois disso, poder criar.

O difícil será permitir, antes de mais, legitimar e valorizar esta forma de ser, de estar e de fazer enquanto se trabalha. Suspeito, por experiência própria, que a maior dificuldade será mudarmo-nos a nós próprios neste sentido, antes de esperar ver qualquer mudança nos outros ou nas instituições.

João Sevilhano

Partner, Strategy & Innovation @ Way Beyond.

https://joaosevilhano.medium.com/
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