Faça esta única coisa: Nada

Detalhe de um livro de amostras têxteis (1863). Maison Robert, Victor Ducroquet, Paris.

Detalhe de um livro de amostras têxteis (1863). Maison Robert, Victor Ducroquet, Paris.

Num mundo e era em que todas coisas têm de ter uma função e onde o “propósito” é por vezes tratado como uma mera “palavra da moda”, a nossa capacidade para nos deleitarmos em actividades inúteis está a desaparecer.

Esquemas de produtividade, a doutrina de “fazer-as-coisas”, e o jargão empresarial no geral têm inundado as nossas mentes e o nosso tempo. Até o nosso tempo de lazer. Quantos de nós planeamos as nossas férias até ao último detalhe, usando um modelo ou uma aplicação sofisticados? Quantos de nós procuramos ler tantos livros quanto conseguimos, o mais rápido que conseguirmos? Desde quando ler rápido se tornou preferível a ler bem?

Porque tem o nosso tempo livre de ser medido, controlado e “gamificado”? Não será esse um paradoxo absurdo: colocar restrições ao nosso tempo livre?

Recentemente, durante um fim-de-semana sem miúdos, dei por mim sozinho, enquanto a minha mulher estava na sua caminhada matinal. Contemplei a planície alentejana, a braços com a decisão sobre o que fazer a seguir. A minha ociosidade tornara-se insuportável. Porque era tão difícil fazer nada? Comecei por analisar esta sensação. Aqui fica o que encontrei, começando pela palavra “nada”.

Para nós, humanos, “nada” normalmente significa alguma coisa, e temos evidências que nos chegam do mundo da física que suportam esta ideia. Também nos é fácil ver “nada” como o oposto de tudo, mas isso pouco acrescenta ao nosso entendimento. No final de contas, nada pode ser qualquer coisa. Outro uso para “nada” surge quando queremos categorizar um esforço ou situação de pouca importância: “não foi nada”, dizemos. Em todos os casos, é maravilhoso como conseguimos, genericamente, compreendermo-nos em relação ao “nada”, com pouco esforço.

- O que se passa, querida/o?

- Nada!

É fácil de perceber que aquele “nada” significa alguma coisa, qualquer coisa ou até tudo.

Exploremos agora a ideia de “fazer nada”. O acto de “fazer nada” é, na verdade, fazer alguma coisa. Certamente não é o mesmo que “não fazer nada”. É precisamente quando temos nada para fazer que qualquer coisa e que todas as coisas sejam possíveis. Além disso, o verbo “fazer” está presente, indicando alguma acção, algum desejo ou alguma intenção.

Neste mundo obcecado com “fazer”, onde o reconhecimento e a legitimidade parecem ser apenas obtidos através de acções explícitas, fazer nada não resolve uma dificuldade como a que encontrei por ter a minha lista de afazeres vazia. Pelo contrário, poderá adensar o espaço entre o que é suposto estarmos a fazer e o que poderá surgir de uma espécie de vazio.

E se eliminarmos o verbo “fazer” e o substituirmos por “ser”, “estar”, ou “ficar”? Procurar ficar quieto, estar ocioso, por exemplo. O que acontece quando se toma uma decisão como essa? Inúmeros autores ao longo da história, desde o Robert Louis Stevenson até ao John Cleese, louvaram os benefícios da ociosidade e indicaram a sua ligação à criatividade. É claro que pode trazer desconforto ou até sofrimento mas se esse for o seu caso, conseguirá obter uma boa dose de autoconhecimento, pelo menos em relação á sua relação com o “fazer”. Como muitas coisas, se se praticar ficar quieto vezes suficientes, talvez se consiga começar a ficar confortável com este estado.

O que sei é que se não tivesse parado para escutar o desconforto que senti naquela manhã de Domingo, se não tivesse prestado atenção à minha obsessão com encontrar alguma coisa para fazer, estas palavras não existiriam.

João Sevilhano

Partner, Strategy & Innovation @ Way Beyond.

https://joaosevilhano.medium.com/
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