Das competências “moles”

Parte I: Deixemos de lhes chamar “moles”

O que pensa e sente quando alguém lhe diz que outra pessoa é “dura”? Julgo existir uma elevada probabilidade de ter respondido algo dentro das seguintes linhas: é uma pessoa que não se verga, que não desiste com facilidade; que tem opiniões fortes e que dificilmente as altera; que pode ser pouco delicada ou mesmo indelicada no trato; que é directa, frontal; que não revela facilmente as suas emoções; que é valente. Se associarmos a “dureza” ao “ouvido” também pode significar que não ouve bem. Se dura for a sua inteligência pode indicar que esta não abunda. Podendo estar a interpretar de forma tendenciosa, elidindo os aspectos relacionados com audição e com a inteligência, parece-me que os atributos que tipicamente são enunciados em relação a ser-se duro/a facilmente poderiam passar por descrições de pessoas que são bem sucedidas em ambientes profissionais. Em determinados contextos, ser-se uma pessoa dura é uma vantagem e fonte de reconhecimento e valorização.

Façamos o mesmo exercício para uma pessoa “mole”. Moles são as pessoas sem energia nem vigor; que são frouxas e que cedem facilmente à pressão; que são irresolutas ou banal e ingenuamente indiferentes. Ao contrário da dureza, será difícil encontrarmos contextos onde ser mole é vantajoso.

Sabendo que estarei a entrar por terrenos movediços, afastemos o elefante psicanalítico da loja de porcelanas da avenida do politicamente correcto. Procurando dar alguma expressão ao nosso inconsciente, a conotação sexual destas palavras pode ajudar a entender a valorização da primeira e a desvalorização da segunda, num mundo onde o pêndulo do valor ainda se inclina mais para o lado dos homens do que das mulheres, sem felicidade nem justiça.

As palavras transportam mais do que descrições. Estão carregadas de significados, de histórias e de História. Quando as transferimos entre domínios têm a extraordinária capacidade de mudar a substância sem que se altere a sua forma. A mesma palavra pode significar coisas diferentes em contextos e com intenções diferentes. Mas o que será que fica para trás? Que rasto fica de outros usos quando a história que queremos contar com essa palavra é diferente? Concretamente, o que será transportado pelas palavras “dura” e “mole” quando deixamos de as usar para qualificar pessoas e passam a categorizar competências?

Se ainda não ficou claro, refiro-me as competências duras - hard skills - e às competências moles - soft skills. Já aludi a este tema quando escrevi sobre o jargão empresarial e sobre a burocracia emocional mas aqui quero oferecer uma dedicação particular a esta famosa dicotomia que, revelando já o fim, defendo que deverá perecer.

A expressão soft skills terá sido criada na década de sessenta do século passado pelo Exército dos Estados Unidos da América. Usavam-na para se referirem a qualquer competência que não implicasse o uso de maquinaria. Os militares terão percebido que muitas actividades importantes estavam incluídas nesta categoria e que, inclusive, poderiam ser factor determinante do sucesso das iniciativas ou do seu contrário. Eram atributos suficientemente vagos para poderem significar tudo e nada mas poucas dúvidas havia sobre a sua importância.

Pouco terá mudado. Estas competências continuam a ser consideradas fundamentais e evoluíram a ponto de encontrarmos declinações como “competências interpessoais” ou “comportamentais”, embora muitas ultrapassem a esfera da acção. Carisma, influência, autenticidade, escuta, sensibilidade, sabedoria, eloquência, clareza, sinceridade, liderança, colaboração, abertura, flexibilidade, visão, presença, humor. A lista continua, com tendência para ser interminável. Um dos grandes problemas deste tipo de competências é que com frequência designam atributos que, na verdade, podem não ser competências. Serão maneiras de ser, qualidades ou virtudes.

Quando penso nisto lembro-me do encenador Luís Gonzaga Moreira que melhor que ninguém explica o fenómeno do it factor, que leva alguns actores e actrizes a serem escolhidos e outros não. Tal como no mundo da representação, também no mundo do empresarial, que pode ter mais semelhanças com o primeiro do que se imagina, há pessoas que têm “aquilo” e outras que não. Ter “aquilo”, no mundo dos líderes e dos liderados, é possuir soft skills. Lá está, podem ser, uma vez mais, tudo e nada, mas alguma coisa serão, porque as conseguimos identificar.

Por oposição, as não menos importantes hard skills são as que implicam a mestria técnica ou administrativa. Parece claro que saber operar uma máquina, um computador, por exemplo, faz parte do leque das competências duras. Actualmente este tipo de competências estende-se para lá do que é puramente físico. Saber manejar um determinado software também parece encaixar nesta categoria mas a distinção entre ambos os tipos de categorias pode não ser tão linear quanto aparenta.

As fronteiras não são apenas cartesianas (corpo vs. mente), porque saber ler e interpretar um balancete ou saber calcular um orçamento não implica apenas o uso do corpo e ainda assim estas capacidades não pertenceriam às soft skills. A diferença parece estar noutra dicotomia clássica: razão vs. emoção. Tudo que é menos cognitivo e mais emocional tende a ser considerado “mole” mas, para tornar tudo ainda mais complexo, se entrarmos pelo campo da metacognição - a capacidade de pensar sobre como se pensa - manter-nos-emos na mesma categoria.

No fim, a divisão entre competências “duras” e “moles” parece ser mais um subterfúgio para tornar o mundo mais manejável. Tudo parece ser mais simples quando é dividido em preto-branco, esquerda-direita, bom-mau, etc. Com estes artifícios fomenta-se a divisão entre as pessoas e, pior, a divisão nas e das pessoas, tornando o mundo mais complicado. Que vantagem tiro de saber interpretar dados complexos se não os sei explicar a outros? O que me adianta ser atento aos outros e saber comunicar de forma clara e eloquente quando não entendo o que tenho para comunicar?

É necessário e urgente encontrar mecanismos que permitam encararmo-nos de forma completa e valorizar a unicidade e a coerência. Reduzir as pessoas ao seu desempenho e à sua capacidade produtiva é deixar uma imensidão de fora. Onde cabem a ética, a moral e a estética nas soft e nas hard skills? Em lado algum. Ao continuarmos a usar estas designações estaremos a afastar a possibilidade de ligar a arte à ciência, o ócio ao negócio, a beleza à produtividade. O mundo do trabalho precisa dessas ligações mas para isso precisa de se reinventar. Comecemos por deixar de atribuir moleza e dureza às competências.

Parte I escrita para o Link to Leaders a 4 de Fevereiro de 2022; publicada a 14 de Fevereiro de 2022.

Parte II: Deixemos de lhes chamar competências

Na primeira parte desta reflexão sugeri que as competências deixassem de ser qualificadas como “moles” (soft) ou “duras” (hard). Agora, começando pelo fim, deixo outra sugestão: deixemos de chamar competências às soft skills.

Há mais de uma década que conduzo um exercício sobre este assunto. Já o realizei com grupos grandes e pequenos, em contextos académicos e corporativos, em diferentes países e culturas e os resultados são sempre os mesmos. Não estou nem a generalizar nem a exagerar: sempre. Não se iluda, não é ciência, é empirismo, embora não afaste a ideia de estudar este fenómeno. Sempre realizei este exercício com grupos e, mesmo sem nenhuma experiência prévia, estou confiante o suficiente para sugerir que experimente sem companhia. Siga, por favor, os seguintes passos:

  1. Pense numa pessoa que seja para si uma referência1. Pode ser um familiar, um professor, um colega, um chefe, um amigo ou até uma figura pública que não conheça pessoalmente.
  2. Agora que já encontrou esta sua pessoa de referência, pense em algumas interacções com essa pessoa (ou com a sua obra) que tenham ficado retidas na sua memória.
  3. De seguida, liste entre cinco e dez características distintivas dessa pessoa; elenque os traços que a tornam numa pessoa de referência para si.

Resta um quarto e último passo mas antes de explicar o que terá de fazer é importante reflectir sobre o que aproxima e afasta “competências e “qualidades”. Afastemos, antes de mais, um preconceito comum em relação a estas duas dimensões que preconiza que as primeiras são adquiridas e as segundas são inatas. Por outras palavras, a competência é algo que se aprende enquanto que as qualidades nascem com as pessoas. É uma explicação simples e apelativa mas incorrecta.

Ambas as dimensões estão ligadas, fazem parte de um contínuo e são passíveis de ser aprendidas. O desenvolvimento de umas é parte indissociável da evolução das outras. Numa definição tentativa e rápida, a ”competência” tem que ver com o saber-fazer, tem dimensão operacional, relaciona-se com o conhecimento e manifesta-se através da produtividade e da eficácia; as “qualidades” têm que ver com o saber-ser, têm dimensão ontológica, relacionam-se com a sabedoria e manifestam-se através da ética e da estética.

Está na altura de voltar à sua lista de características para o último passo do exercício. Agora terá que categorizar cada uma das características, etiquetando-as como “competência” ou “qualidade”. É provável que nalguns casos seja difícil decidir por apenas uma das categorias e que considere que as duas encaixam bem. Porém, sugiro que se esforce por escolher apenas uma das etiquetas, sempre que conseguir.

Aposto que acabou com mais qualidades do que com competências. Se ganhei a aposta significa que o resultado do seu exercício está em linha com o desfecho que surge sempre que conduzo este exercício. Uma conclusão: quando pensamos em pessoas que são para nós referência tendemos, de forma clara, a valorizar mais as suas qualidades do que as suas competências. Portanto, mais do que aquilo que sabem fazer, valorizamos a sua forma de ser. Seguindo por esta hipótese será fácil retomar a ideia “pegajosa” de que a maneira de ser das pessoas pende para a constância e para ser considerada inata, pelo menos uma parte significativa. É também fácil associarmos as qualidades ao carácter ou à personalidade e o caminho até a uma perspectiva psicológica (de que me quero afastar neste texto) destes conceitos aparece sem dificuldade.

Se a tal hipótese faz sentido e, mais do que isso, se tiver fundo de verdade, surge algumas perguntas importante: se valorizamos mais qualidades do que competências por que razão continuamos a adoptar sistemas educativo-pedagógicos e de avaliação que visam o desenvolvimento e a aferição de competências? Por que razões continuamos a gastar tanto em programas de desenvolvimento de competências liderança2, quando aquilo que mais valorizamos nos nossos chefes são as suas qualidades?

É mais fácil e menos arriscado medir e avaliar competências do que qualidades (ou virtudes). Por esta razão, procurámos uma solução que demonstrei não funcionar, espero, quando as dividimos em “duras” e “moles”. A avaliação de qualidades é mais arriscada. Implica considerar um maior grau de subjectividade, o que não é necessariamente mau, desde que aprendamos a navegar por esses meandros3, e é incontornável a inclusão de uma dimensão moral.

A ciência e o mundo dos negócios têm uma dificuldade crónica em assumir posições morais. Talvez porque procuram uma isenção e uma neutralidade que são virtualmente inatingíveis; talvez porque no mundo actual essas posições significam um refúgio para os extremismo e fundamentalismo crescentes. A subjectividade é uma riqueza que valorizamos nas pessoas que nos ajudam a ser melhores. O que nos impede de a abraçar?

Será um medo de nos cristalizarmos numa certa superioridade moral, com todos os riscos que aí ficar traz? Avaliar qualidades implica julgar as pessoas que as possuem. Tal exercício exige compará-las com determinados padrões ou bitolas, questionáveis e discutíveis, é certo. Para se evitar essa eventual superioridade há que educar a nossa capacidade de construir opiniões, sendo parte indissociável desse processo educativo a capacidade de as fundamentar e mais do que isso de as mudar através da sua fundamentação. Querer influenciar sem ter espaço para se ser influenciado é manipulação ou imposição. Ao contemplarmos, de forma autêntica e consciente, flexibilidade e abertura necessários e suficientes para sermos mudados pelo processo e pelos outros correremos menos riscos em nos colocarmos num patamar superior e aproximar-nos-emos mais de uma posição de igualdade e equidade.

Será cautela para não se atravessarem determinadas fronteiras? No fim, somos responsáveis por definir os limites e por os ultrapassar.Com os acontecimentos recentes no mundo, onde vários limites são ultrapassados todos os dias, já não chega termos sistemas e paradigmas que nos conduzam a uma pretensa objectividade. Objectivamente, não estamos a ter bons resultados ao seguirmos esse caminho. O mundo corporativo tem mostrado sinais animadores, com várias empresas a tomarem posições políticas e morais em relação a temas diversos, desde os vários tipos de discriminação que existem até à recente guerra provocada pelo governo russo.

Como escrevem o Tim Leberecht e a Monika Jiang4, é muito importante que as empresas tomem posições que vão para lá das suas declarações de propósito e de missão e que defendam assuntos que são importantes para todos nós e para o nosso planeta. Contudo, não basta apontar o que é feio nos outros. Deve-se olhar e cuidar do que está dentro. Dessa forma a beleza surge não apenas nas suas dimensões estética e reputacional mas é intrínseca.

E a mesma lógica deve acontecer noutros contextos, para além do corporativo. As escolas e universidades devem voltar a assumir uma das suas funções primordiais: criar boas pessoas. Não apenas melhores profissionais. As famílias têm de voltar a ocupar um espaço fundamental de contributo para o desenvolvimento humano, global, mas para isso o mundo do trabalho não pode esgotar as mães e os pais, nem o educativo as filhas e os filhos. A sociedade pode encontrar novas formas de criar comunidades que suportem todos os movimentos anteriores e os governos as estruturas que suportem tudo isto. É um esforço colectivo, conjunto, que deve começar pala dimensão individual. Cada um de nós será responsável por estas mudanças, mas também precisamos de as ver nos outros.

Está visto que o que mais valorizamos é o que “vem de dentro”, o que está incorporado; são as qualidades humanas. Que as qualidades que valorizamos nos outros nos inspirem a encontrá-las ou a criá-las em nós. É um exercício prático, real e concreto mas que vai para além disso. Saber-fazer é muito importante mas saber-fazer enquanto se sabe-ser é o que todos precisamos agora.

Por tudo isto, deixemos de perseguir o desenvolvimento e a valorização de competências; deixemos de lhes atribuir dureza ou moleza. Abracemos o muito mais complexo mas também rico caminho de aprendermos a ser melhores pessoas, outra vez.

Parte II escrita para o Link to Leaders a 21 de Março de 2022; publicado a 31 de Março de 2022


  1. Por “pessoa de referência” entenda: alguém que tenha contribuído para o seu crescimento, para se tornar numa melhor pessoa; alguém cujas características distintivas lhe sirvam como exemplo. ↩︎

  2. Voltemos a querer e ser (bons) chefes ↩︎

  3. A literalidade mata o entendimento ↩︎

  4. Beautiful Business in a Time of War ↩︎

João Sevilhano

Partner, Strategy & Innovation @ Way Beyond.

https://joaosevilhano.medium.com/
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