Da demonização do tédio e do ócio à sacralização do entretenimento e da produtividade
O Verão instalou-se, confortável, quente, trazendo consigo a promessa de férias e uma pausa bem-merecida. Será que é isso que são as férias: uma pausa? Para muitas pessoas as férias são uma descontinuidade, uma ruptura desejada. Desejo é pressão e se esta for demasiado intensa o desejo deixa de ter carácter generativo e torna-se destrutivo. Queremos muito parar. Queremos parar para podermos fazer o que não conseguimos ou não nos é permitido quando estamos em continuidade, com as exigências da rotina. Será que sabemos parar? Estaremos tão condicionados pela cultura da produtividade incessante que transformámos até o nosso descanso numa forma de desempenho? 1
Byung-Chul Han, nos seus livros “Entretenimento e Paixão na História do Ocidente” e “Vita Contemplativa”, oferece uma perspectiva crítica sobre o papel do entretenimento e da actividade constante na sociedade contemporânea. Segundo o filósofo, vivemos numa “sociedade do desempenho”, onde a produtividade e a eficiência se tornaram os valores supremos, infiltrando-se até nos nossos momentos de lazer2. Além desta interpretação sobre “desempenho”, podemos argumentar que a expressão pode ter uma outra leitura. A palavra que vem do inglês “performance”, que é muito usada por nós portugueses, remete-nos mais facilmente para o contexto artístico, e não apenas laboral. De certa forma, a sociedade contemporânea, não elidindo a hipótese de sempre ter sido assim, é um palco onde representamos vários papéis. Ainda assim, a ambição de entretermos os outros com as coisas com que nos entretemos parece ser evidente. Pena é que se tenha abandonado um cuidado Estético e Ético - iniciando com maiúsculas de propósito - nas nossas produções, que pouco ou nada têm de artísticas, em profundidade, entenda-se.
É curioso observar como o tédio e o ócio se tornaram quase palavrões no léxico contemporâneo. Parecem ser vistos como inimigos da eficiência, ameaças ao progresso. No entanto, Han, entre outros autores3, argumenta que é precisamente nesses momentos de aparente inactividade que surge o potencial para a reflexão profunda e o crescimento pessoal. Paradoxalmente, ao tentar eliminar estes estados através do consumo constante de entretenimento ou da busca incessante por produtividade, estamos a minar a própria criatividade e profundidade que tanto anunciamos valorizar.
As redes sociais, as séries infindáveis, os jogos para telemóvel - todos competem pela nossa atenção, não nos deixando um momento sequer para simplesmente… ser. Esta obsessão pelo entretenimento constante não é inocente. Serve perfeitamente os interesses de um sistema que prefere consumidores distraídos e trabalhadores hiperactivos a cidadãos reflexivos. Afinal, quem tem tempo para questionar-se e questionar o mundo quando está demasiado ocupado a fazer scroll no Instagram ou a responder a emails fora do horário de trabalho?
Han propõe uma alternativa radical a este modelo de vida frenético: a redescoberta da “vita contemplativa”. Ele argumenta que a contemplação, longe de ser uma forma de preguiça ou improdutividade, é, na verdade, uma forma poderosa de resistência à lógica de produção e consumo constantes. A inactividade, segundo Han, não é a ausência de acção, mas sim uma forma diferente de se relacionar com o mundo e consigo mesmo.
O conceito de “tédio profundo”, que Han explora, não é um estado a ser evitado, mas sim abraçado. É neste tipo de tédio que surgem as ideias mais originais, as reflexões mais profundas. É um convite a redescobrir o prazer de fazer nada 4, de permitir que a mente vagueie sem um objectivo predeterminado. Num mundo obcecado com metas e resultados, permitir-se simplesmente ser é um acto revolucionário. Num mundo onde o conforto da previsibilidade é um estado cada vez mais requisitado e valorizado5, “a curiosidade é insubordinação na sua forma pura”, citando Vladimir Nabokov.
As férias, que deveriam ser um momento de descompressão, tornam-se muitas vezes numa maratona de actividades e partilhas nas redes sociais. Parece que temos de provar ao mundo (e a nós próprios) que estamos a aproveitar o nosso tempo livre. Existirá expressão mais tonta do que “ocupação dos tempos livres”? Trata-se de um quase-oximoro, pouco inteligente. Se são “tempos livres” porque deveremos ter a pretensão de os ocupar? Mas estaremos realmente a viver ou apenas a desempenhar uma versão hiperactiva e “performática” do descanso?
O regresso ao trabalho é frequentemente encarado com uma mistura de alívio e ansiedade. Alívio por voltarmos à rotina, à “normalidade” produtiva. Ansiedade por termos de enfrentar a montanha de tarefas acumuladas. E assim o ciclo recomeça, sem nunca termos verdadeiramente parado. Han propõe uma abordagem radicalmente diferente: a incorporação da contemplação no nosso dia-a-dia, não como uma fuga do trabalho, mas como uma forma de enriquecê-lo e de lhe dar mais sentido. É uma espécie de abolição final da ideia do equilíbrio trabalho-vida em direcção a uma integração verdadeira e não um desequilíbrio mais ou menos evidente, que é o mais comum.
Esta dinâmica reflecte uma sociedade que se tornou profundamente desconfortável com qualquer experiência que não possa ser imediatamente convertida em valor de mercado ou em métricas de produtividade6. O que perdemos neste processo é precisamente o que torna a vida contemplativa valiosa: a sua natureza imprevisível, não-utilitária e potencialmente transformadora.
Mas será que realmente precisamos de uma alternativa? Não estaremos apenas a substituir uma tirania por outra, trocando a obsessão pela produtividade pela obsessão pela contemplação? É curioso como rapidamente se procuram novas prescrições, novos guias para viver, mesmo quando estes se apresentam sob a forma de “fazer nada”.
A ironia não escapa: livros, artigos e palestras que ditam como se deve descansar, como se deve ser improdutivo. Parece que nem o ócio escapa à lógica da optimização. “Como ser melhor a não fazer nada” poderia ser o próximo best-seller de auto-ajuda.
E se, em vez de se procurar uma nova fórmula para viver, se questionasse a própria necessidade de fórmulas? E se, em vez de haver preocupação em estar a fazer a coisa “certa” - seja ela trabalhar incessantemente ou contemplar profundamente - simplesmente se vivesse de forma mais profunda, consciente e conscienciosa?
Talvez o verdadeiro desafio não seja abraçar a “vita contemplativa” ou rejeitar a “sociedade do desempenho”. Talvez o desafio seja reconhecer que se está sempre a oscilar entre diferentes estados - activos e contemplativos, produtivos e ociosos - e que todos têm o seu lugar e valor. A questão fundamental talvez não seja se se deve ser produtivo ou contemplativo. A questão poderia ser: o que estou a evitar ao entreter-me com coisas vazias de significado7? Ou até: o que tenho medo de encontrar, quando mergulho em profundidade e me entrego à abrangência? Ou ainda: qual a verdadeira intenção que subjaz às escolhas que faço com que ocupar o meu tempo?8
Porque, no fim de contas, talvez as respostas não residam nem na acção frenética nem na contemplação profunda, mas na aceitação simples e despretensiosa do que quer que a vida apresente - seja isso uma tarde de trabalho intenso ou um momento de tédio absoluto.
Fica a reflexão.
Escrito para o Link to Leaders a 1 de Agosto de 2024, publicado a 22 de Agosto de 2024.
-
Ver Por uma nova definição de trabalho e Continuando a procurar uma nova definição de “trabalho” para uma discussão sobre a necessidade de redefinir o conceito de trabalho na sociedade hodierna. ↩︎
-
Ver Deixar de usar o tempo como medida para o trabalho e dar importância ao que é inútil ↩︎
-
Lembro-me do John Cleese e de muitos outros artistas que celebram o tédio como a centelha da criatividade. ↩︎
-
Voltando à criatividade, recordo-me de um artigo recente, cuja referência não consegui recuperar, que declarava que um sistema de inteligência artificial era mais criativo que a média dos humanos do grupo de controlo. Contudo, numa leitura mais atenta, percebi que o critério usado sobre criatividade era o potencial comercial das ideias avançadas. ↩︎
-
A bem da clareza, não defendo que todo o entretenimento é nefasto. A hipótese é que escolhamos entreter-nos com actividades não sirvam a alienação, e que possam trazer-nos algum tipo de eventual riqueza, sem pressão. ↩︎