Obsessões modernas, ambições clássicas: uma crítica ao papel da tecnologia e da internet

Há algum tempo que tenho vontade de partilhar algumas das ideias e reflexões que tenho feito acerca do papel da tecnologia, das influências e repercussões do seu uso na nossa vida enquanto indivíduos, sociedade e civilização. Mais concretamente tenho-me interessado por questões como: a acessibilidade da informação, do conhecimento e a dimensão “social” digital que hoje nos liga todos. Até os que nela não participam, ou dizem que não participam. Mesmo esses, estando fora, desempenham o seu papel e fazem sentir o seu impacto, pela oposição e exclusão, em mais do que um sentido, que representam.

Mais recentemente tomei contacto com o Evgeny Morozov — autor, pensador, crítico e profuso utilizador do Twitter. Para quem não o conhece sugiro a leitura deste artigo. Li o seu primeiro livro The Net Desilusion e estou a meio do segundo To Save Everything Click Here. Considero o último brilhantemente bem escrito, por vezes sarcástico, irónico, crítico e ao mesmo tempo profundo e complexo. Quando um autor escreve um livro onde revela a qualidade do seu raciocínio, a facilidade e pertinência das suas associações, dizendo a seu respeito que ainda não está no ponto, que é apenas um ensaio para algo melhor que virá, confesso que sinto entusiasmo e reverência.

Apercebo-me que já tinha escrito sobre este assunto, apesar de partir de perspectivas diferentes; só podia ser assim mesmo pois apenas descobri o Morozov muito depois. Torna-se evidente que há ligações e associações que se fazem apenas depois de pensarmos várias vezes que temos pensamentos e ideias “originais”. O que Morozov descreve e critica é uma tendência muito em voga de procurar soluções tecnológicas para questões humanas complexas. O que ele chama de “solucionismo”.

É a vontade de melhorar, praticamente tudo! (…) A reformulação de todas as situações sociais complexas em problemas impecavelmente definidos, com soluções definitivas e computáveis ou como processos transparentes e óbvios que podem ser optimizados — se os algoritmos correctos estão em ordem! — é provável que esta demanda possa ter consequências inesperadas que podem eventualmente causar mais estragos do que os problemas que procuram resolver.

À ideologia que legitima e sanciona aspirações deste género chamo “solucionismo”. Peço emprestado este termo descaradamente pejorativo ao mundo da arquitectura e planeamento urbano, onde tem sido utilizado para fazer referência a uma preocupação pouco saudável com soluções sexy, monumentais e de mente estreita — o tipo de coisa que deslumbra plateias nas conferências TED — para problemas que são extremamente complexos, fluidos e contenciosos.
— Evgneny Morozov em “To save everything click here

Por razões profissionais e também por gosto pessoal, sigo várias fontes que noticiam as novidades e tendências, a um ritmo imparável e difícil de acompanhar, do mundo dos negócios e das tecnologias. Arrisco dizer que diariamente leio títulos, artigos e documentos que seguem esta tendência para que Morozov nos alerta. Uma das diferenças da minha perspectiva em relação à dele é que, pela minha experiência profissiona e pelo meu percurso de vida, não restrinjo a crítica ao “mundo da tecnologia e da internet” e extendo-a à maioria dos componentes dos mundos empresarial e político actuais. Hoje vivemos num tipo mais sofisticado de taylorismo que apenas assim evoluiu porque a natureza das tarefas também se tornou mais complexa. Não apenas as tarefas mas também as pessoas, os colaboradores, sobretudo as de determinadas gerações, se tornaram mais exigentes na reclamação, embora de forma pouco expressiva por não a saberem sustentar, de um novo sentido para o trabalho como parte integrante e significativa das suas vidas. Estaremos numa fase em que passámos de “corpos dóceis”, como Foucault os chamou, para “mentes dóceis”, onde o controlo é feito através do alimento de expectativas e ilusões de felicidade, bem-estar, prazer e soluções para as grandes questões da vida.

Que pretensioso é dizer que a culpa da falta produtividade e da infelicidade nas equipas, nas empresas, é do email e que ao optar pela ferramenta X, criada pela empresa que segue esta crença, é não apenas estar a aderir a uma nova tecnologia mas também a contribuir para a felicidade e resultados! Ou outra que pretende ser o nosso cérebro, a nossa memória, guardando tudo o que consideramos importante para podermos aceder mais tarde. O que se esquecem é que dessa forma estarão a contribuir para o definhamento ou, na melhor das hipóteses, para o não-desenvolvimento da capacidade de manter na memória aquilo que nos interessa, de ligar os interesses aos afectos. Na mesma linha, se tal me fosse pedido, conseguiria inventariar um conjunto de vantagens sobre a utilização dos tablets por crianças, estudantes e/ou como substitutos dos livros. Seria igualmente fácil produzir uma lista tão grande ou maior para apoiar a causa contrária, especialmente no caso das crianças. “A Educação não é a transmissão de informação ou de ideias.

A Educação não é a transmissão de informação ou de ideias. A Educação é o treino necessário para poder utilizar a informação e as ideias. À medida que a informação se liberta das livrarias e das bibliotecas e inunda os computadores e dispositivos móveis, esse treino torna-se mais importante, não menos.
— Evgeny Morozov cita Pamela Hieronymi em “To save everything click here”

Sem referir os nomes, devo alertar que utilizo os dois serviços a que me refiro acima e tenho um tablet que utilizo para ler, estudar, trabalhar e onde estou a terminar de escrever este texto. Tal como Morozov, não me considero um crítico da tecnologia ou da “internet”. Quem me conhece sabe que sou um curioso e estou atento à área, provavelmente mais do que a maioria, e sou defensor da utilização dos mais diversos gadgets e serviços online.

Aquilo que critico, tal como Morozov, embora de forma diferente, é a pobre e limitada compreensão do que é a complexidade da natureza humana; é ver problemas e situações humanas, sociais, culturais e civilizacionais complexas serem decompostas em zeros e uns ou em receitas simplistas e sedutoras; é a confusão que se faz entre o conhecimento e a sabedoria, é pensar que aquilo que é passado nas TED Talks é “o último grito”; é ver que à Ciência (refiro-me aos que tratam a ciência com “C” grande), à tecnologia, à Economia, à Política é hoje atribuído muito mais valor e dada mais relevância do que à Cultura, à Educação, à Filosofia e às ciências sociais e humanas no geral; é ver que o Ricardo Araújo Pereira e o Pedro Bidarra têm razão.

O ideal será viver com o melhor dos dois mundos. Mas, enquanto a tecnologia evolui a um passo difícil de acompanhar, o desenvolvimento humano é lento.

 
João Sevilhano

Partner, Strategy & Innovation @ Way Beyond.

https://joaosevilhano.medium.com/
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