Fique dentro da caixa e conheça bem a sua zona de conforto

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O que lhe acontece quando alguém lhe diz que tem de “pensar fora da caixa”? E quando lhe dizem, na mesma sequência, que precisa de “sair da sua zona de conforto”? Se é como eu, quando oiço uma dessas duas expressões, que fico com uma espécie de urticária metafísica, o mínimo será algo próximo de revirar os olhos. Creio existirem boas razões para uma reacção adversa.

No caso “fora da caixa”, parecem ainda existir algumas boas razões teóricas para este conselho. Num exemplo recente, o mediático psicólogo norte-americano Adam Grant dedicou o seu último livro - Think Again - às vantagens que podemos obter dos exercícios de repensar e de desaprender, sobretudo neste mundo nosso onde a incerteza e a mudança são constantes. Na verdade, é sabido que temos quase duas centenas de razões para nos fazer pensar “dentro da caixa”: os conhecidos e novamente na moda enviesamentos inconscientes. Mesmo depois de me deleitar com este completíssimo mapa, continuo a acreditar que entre estes 188 enviesamentos há um que reina todos: acharmos que não estamos enviesados. Por outras palavras, a nossa caixa é-nos transparente e as suas paredes têm filtros que nos levam a ver as dos outros como opacas. Quando aliamos este fenómeno à presunção de sabermos o que é melhor para os demais surge-nos, naturalmente, a orientação para os outros pensarem fora da sua caixa.

Ainda assim, parece-me arriscado empurrar alguém para fora das suas “quatro paredes”. Primeiro, esta indicação parte do pressuposto que dentro não está a solução. E pode estar. Segundo, porque, para algumas pessoas, poderá levar a uma postura de vitimização, procurando uma justificação em algo externo que escape ao controlo e à influência da pessoa em questão. É muitas vezes mais fácil culpar o trânsito pelos nossos atrasos e ainda há cães que encontram nos “TPC” um petisco bastante nutritivo. Já se sabe que nem sempre é fácil assumirmos a nossa responsabilidade.

Em relação ao “sair da zona de conforto” a minha resistência é ainda maior. É certo que alguns decanos da psicologia, mesmo que de diferentes “psicologias”, como o Freud ou o Piaget, nos disseram que a aprendizagem, o desenvolvimento e a evolução resultam de algum tipo de conflito, desconforto ou mesmo de sofrimento. Até encontramos reforço desta ideia na nossa própria locomoção. Sendo mamíferos bípedes, andando em duas patas de forma permanente, o nosso centro de gravidade é mais instável do que o de outro animal que use as quatro para se movimentar. Por isto, para seguirmos, precisamos de provocar uma sucessão de desequilíbrios: para darmos passos em frente precisamos de abdicar de estarmos equilibrados. Para aprendermos a fazer isto, para que passe a ser confortável, precisamos de cair centenas de vezes. Ligada a estas ideias está outra, de inspiração protestante, muito presente no mundo do trabalho, sobre a qual já escrevi: tem valor o que custa. O que não custa não vale ou vale menos. Portanto, para quem assim pensa e sente, parece óbvio que a solução estará no desconforto.

Contudo, como muitas vezes acontece, o senso comum faz interpretações parciais a partir do conhecimento académico e científico. A história quase nunca é toda nem bem contada. É certo que somos seres que pendem para homeostase. Por isto, tudo o que nos desequilibra não nos é confortável. Para que as aprendizagens sejam sustentadas e sustentáveis é fundamental sentirmos conforto. O objectivo não será estarmos constantemente desequilibrados ou desconfortáveis. A ideia é conseguirmos fazer incursões para zonas que estão fora da nossa zona de conforto sabendo que podemos voltar à nossa “caixa”. É aí que, com tempo e espaço para o efeito, podemos reflectir sobre a experiência que tivemos em território desconhecido. Fazendo essas viagens as vezes necessárias, passamos a conhecer melhor esses territórios até que passam a ser familiares. Quando tal acontece, significa que a nossa zona de conforto se ampliou. Estarmos, ainda por cima empurrados por outros, demasiado tempo sem conforto leva-nos a uma de duas coisas: ao pânico, que nos faz fugir, lutar ou paralisar, ou, tão mau ou pior, pelo crescente conformismo ou languidez provocados pelo apontamento constante das nossas falhas, a sentir desconforto ou mesmo sofrimento com o espaço que era o nosso porto seguro.

Uma última ideia, para terminar. Outro dos motivos desta reacção “alérgica” tem que ver com a banalização destas expressões. Mais do que lugares comuns, tornaram-se espaços vazios que reflectem o vácuo e a preguiça de quem as oferece como conselho. Fica uma sugestão para quem aconselha desta forma, quando é a melhor maneira de ajudar alguém, porque nem sempre é a melhor: aconselhar é mais útil quando se encontra substância na fundamentação e precisão na indicação. Por que razões e com que intuitos deverá alguém, essa pessoa específica a quem se está a dirigir, “pensar fora da caixa”? O que considera ser “a caixa” dessa pessoa e como a poderá estar a limitar? Será que a pessoa a quem está a pedir ou ordenar que saia da sua zona de conforto lhe parece confortável? Em que se baseia para dizer isso? O que pensa essa pessoa de tudo isto? Talvez, com perguntas como estas, possa ajudar-se e aos outros a conhecer melhor as caixas onde vivemos, e o que de precioso lá temos arrumado, e a saber para que sentido será melhor expandir a nossa zona de conforto.

Escrito para o Link to Leaders a 13 de Junho de 2021; publicado a 17 de Junho de 2021‌.

João Sevilhano

Partner, Strategy & Innovation @ Way Beyond.

https://joaosevilhano.medium.com/
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